HISTORIAS E SONHOS

HISTÓRIAS E SONHOS

Quando a impressão deste livro ia já pela metade, ocorreu o falecimento de Prudêncio Cotejipe Milanês, a quem é ele dedicado. Milanês foi meu chefe de seção na Secretaria da Guerra; mais do que isso, porém, foi um meu amigo bondoso e paternal.

Não fora ele e alguns outros companheiros, não me lembraria mais de que havia passado pelas catacumbas do Quartel General, onde se guardam, com o máximo cuidado, nos seus ataúdes, adornados de belos dourados e pinturas, tantas múmias que nem hieróglifos enigmáticos possuem nos seus caixões mortuários, a fim de permitir ao curioso, com esforço e sagacidade, decifrar-lhes os nomes, o que foram e o que fizeram de útil e grande na vida.


Milanês morreu, como já foi dito; e a dedicatória devia ser em outros termos: à memória, etc., etc., etc. Tem de ficar como está, fazendo crer ao desprevenido que ele ainda é deste mundo. Não havia inconveniente algum nisso, pois, para mim, talvez seja essa a forma exata e justa de homenagear o meu generoso amigo, tanto ele é vivo na minha saudade e na minha gratidão. Era preciso, entretanto, explicar isto ao leitor; e é O que estas breves linhas pretendem.

Rio, 8 de dezembro de 1920 L.B.

AMPLIUS!

AMPLIUS!


Corno me parecesse necessário um prefácio para essa coletânea de contos e fantasias de várias épocas e cousas de minha vida, julguei-me no direito de republicar, à testa dela, as linhas que se seguem, com o título acima, editadas poucos meses depois do aparecimento do meu livro Triste fim de Policarpo Quaresma.

Apareceram em um jornal de grande circulação da cidade do Rio de Janeiro, A Época, e eu tive com elas o intuito de esclarecer o que poderia haver de obscuro em certas passagens dos meus humildes trabalhos. Trata-se agora de contos e cousas parecidas, mais do que nunca elas me parecem necessárias á boa inteligência do que a minha mão inábil quis dizer e não soube; e eu as transcrevo aqui, na suposição de que não são demais.

Ei-las como saíram em setembro de 1916:


Tendo publicado, há poucos meses um livro, poderá parecer a alguns leitores que estas linhas se destinam a responder críticas feitas à minha humilde obra. Não há tal. Já não sou mais meninoe, desde que me meti nessas coisas de letras, foi com toda a decisão, sinceridade e firme desejo de ir até ao fim.

Quem, como eu, logo ao nascer está exposto á crítica fácil de toda gente, entra logo na vida, se quer viver, disposto a não se incomodar com ela.

A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois afirma Carlyle que men of letters are a perpetual priesthood.

De resto, todos os críticos só tiveram gabos para a minha modesta novela; e, se não foram alguns me serem quase desconhecidos, temeria que fossem inimigos disfarçados que conspirassem para me matar de vaidade.

A razão destas linhas é outra, muito outra, e eu explico já.

A emoção do recebimento de uma carta anônima só me foi dado experimentar ultimamente. Muitas dessas coisas banais da vida têm-me chegado assim tardiamente e algumas, pouco corriqueiras, antes do tempo normal aos outros.

A carta era anônima, mas absolutamente não era injuriosa. Vinha escrita em linda letra e eu tenho pena em não acreditá-la feminina, pois se fosse meteria uma inveja doida aos galantes dos cinemas e maxixes da moda, linda gente feita de pedacinhos de mulheres feias.

Não tive portanto a emoção da carta anônima, pois a missiva era cortês, fazendo sobre o meu Policarpo reparos sagazes e originais.

Simpatizei tanto com o escrito que não pude furtar-me ao desejo de responder, de qualquer forma que pudesse, ao desconhecido autor.

E o que pretendo fazer aqui.

Apesar de toda a inteligência que ressuma nas palavras que a epístola contém, não me parece que o autor estivesse, em certos quarteirões, muito fora dos modos de ver da nossa retórica usual.

Percebi que tem de estilo a noção corrente entre Leigos e... Literatos, isto é, uma forma excepcional de escrever, rica de vocábulos, cheia de ênfase e arrebiques, e não como se o deve entender com o único critério justo e seguro: uma maneira permanente de dizer, de se exprimir o escritor, de acordo com o que quer comunicar e transmitir.

Como não tocasse de frente em tal questão, deixo de parte semelhante ponto e reservo uma resposta mais ampla, detalhada para qualquer crítico ulterior. Veremos, então, se Descartes tem ou não estilo; e se Bossuet é ou não um estilo.

O que, porém, me faz contestar o meu amável correspondente

anônimo, é a sua insistência em me falar na Grécia, na Hélade sagrada, etc., etc.

Implico solenemente com a Grécia, ou melhor: implico solenemente com os nossos cloróticos gregos da Barra da Corda e pançudos helenos da praia do Flamengo (vide banhos e mar).

Sainte-Beuve disse algures que, de cinqüenta em cinqüenta anos, fazíamos da Grécia uma idéia nova. Tinha razão.

Ainda há bem pouco o senhor Teodoro Reinach, que deve entender bem dessas coisas de Grécia, vinha dizer que Safo não era nada disso que nós dela pensamos; que era assim como Mme. Sévigné. Devia-se interpretar a sua linguagem misturada de fogo, no dizer de Plutarco, como uma pura exaltação da mulher. A poesia sáfica seria, em relação à mulher, o que o diálogo de Platão é em relação ao homem. Houve escândalo.

Não é este o único detalhe, entre muitos, para mostrar de que maneira podem variar as nossas idéias sobre a velha Grécia.

Creio que, pela mesma época em que o senhor T. Reinach lia, na sessão das cinco academias reunidas, os resultados das suas investigações sobre Safo, se representou na Opera, de Paris, um drama lírico de Saint-Saëns - Dejanira. Sabem os leitores como vinham vestidos os personagens? Sabem? Com o que nós chamamos nas casas das nossas famílias pobres - colchas de retalhos. Li isto em um folhetim do senhor P. Lalo, no Temps.

Esta modificação no trajar tradicional dos heróis gregos, pois se tratava deles no drama, obedecia a injunções das últimas descobertas arqueológicas. O meu simpático missivista pode ver aí como a sua Grécia é, para nós, instável.

Em matéria de escultura grega, podia eu, com o muito pouco que sei sobre ela, epilogar bastamente. E suficiente lembrar que, de acordo com os preceitos gregos, as obras esculturais não podiam

ser pintadas.

É que eles tinham visto os mármores gregos lavados pelas chuvas; entretanto, hoje, segundo Max Collignon, está admitido que as frisas do Partenon eram coloridas.

A nossa Grécia varia muito e o que nos resta dela são ossos descamados, insuficientes talvez para recompô-la como foi em vida, e totalmente incapazes para nos mostrar ela viva, a sua alma, as idéias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na terra, segundo os seus pensamentos religiosos.

Atermo-nos a eles, assim variável e fugidia, é impedir que realizemos o nosso ideal, aquele que está na nossa consciência, vivo no fundo de nós mesmos, para procurar a beleza em uma carcaça cujos ossos já se fazem pó.

Ela não nos pode mais falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha a dar já nos deu e vive em nós inconscientemente.

Como se vê, o meu correspondente está preso a idéias mortas; e, em matéria de novela, por certas notações que faz, à minha, se não está jungida a um pensamento morto, deixou-se prender por uma generalização que a experiência do gênero não legitima.

Estranha o meu inesperado correspondente que o meu modesto livro fuja à questão de amor; não seja ela o eixo do livro. Mas, caro senhor, essa questão nunca foi primordial no romance.

Nem os antigos, nem os modemos. Nem nos franceses,nem nos espanhóis. Se o senhor me cita Dáfnis e Cloé, eu cito o Satyricon; se o senhor me cita a Princesse de Clèves, eu lhe apresento Lazarlio de Tormes.

Nos grandes mestres modernos, Balzac, Tolstói, Turguêniev, Dostoievski, quase sempre o amor é levado para o segundo plano; e essa sua generalização de que o primordial do romance, e seu característico, por assim dizer, é tratar de uma aventura de amor, é tão verdadeira e necessária como aquela regra das três unidades, em matéria de drama e tragédia, de que os críticos antigos faziam tanta questão, citando Aristóteles, que nunca a tinha estabelecido.

Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si.

A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade.

É ideal dos nossos dias que é ainda beleza a palpitar nas suas mais altas manifestações espirituais; e não, como o meu correspondente pensa, o ressurgimento de concepções desaparecidas, de que só conhecemos poucas e raras manifestações exteriores, que só podem entorpecer a marcha da nossa triste humanidade para uma exata e mais perfeita compreensão dela mesma.

Não desejamos mais uma literatura contemplativa, oque raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam.

Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu.

O meu correspondente acusa-me também de empregar processos de jornalismo nos meus romances, principalmente no primeiro.

Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se dê o contrário, não lhes vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os motivos de desinteligência entre os homens que me cercam.

Se conseguirem isso, por pouco que seja, dou-me por satisfeito, pois todos os meios são bons quando o fim é alto; e já Brunetiére me disse que o era, ao sonhar em esforçar-me, na medida das minhas forças, para fazer entrar no patrimônio comum do espírito dos meus contemporâneos, consolidando pela virtude da forma tudo o que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do nosso destino.

E, como ele queria, assim como querem todos os mestres, eu tento também executar esse ideal em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias. No mundo, não há certezas, nem mesmo em geometria; e,se alguma há, é aquela que está nos Evangelhos: amai-vos uns aos outros.

Para atingir tão alto escopo, tudo serve; e, como são Francisco Xavier, todos nós, que andamos em missão entre hindus, separados em castas hostis, entre malaios ferozes e pérfidos, entre japoneses que se guerreiam feudalmente; todos nós, dizia eu, só devemos ter a divisa do santo: "Amplius! Amplius!" Sim; sempre mais longe!

Rio, 31-8-16

O MOLEQUE

O MOLEQUE
A Arnaldo Damasceno Vieira


Reclus, na sua Geografia universal tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação ou a aridez da região. No Rio de janeiro, há de fato nomes tupis tão eloqüentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução, o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara- seio do mar? E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas- Niterói - água escondida.

Esses nomes tupis, nos acidentes naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem recentes, relativamente.

Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza,

encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la,em destruí-la como cousa demoníaca ou indigna de ficarentre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.

Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de séculoe meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.

O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.

Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.

Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho...

Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.

Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.

Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.

Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de Janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis.

Inhaúma é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços dos nossos edis para apagá-lo.

E um subúrbio de gente pobre, e o bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não se sabe por que, ora são muito estreitas, ora muito largas, bordadas de casas e casitas sem que nelas se depare um jardinzinho mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa. Há, porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria.

Osmédiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao

encontroda Morte. O curioso - o que era preciso estudar mais devagar - é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões históricas.

Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de suas necessidades.

A gravidade de pensamento que todo esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem fazem perguntar se a terra que não tem querido guardar na sua grandeza traços das vidas e das almas que por elas têm passado, ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas, impressões das atuais que, nela,hoje sofrem e mergulham, a seu modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a serra dos Órgãos, solene, soberba...

Numa das ruas desse humilde arrebalde, antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam, tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.

O "barracão" é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes "a sopapos". É menos e é mais. É menos,porque em geral é menor, com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o nosso "rancho" roceiro, possui as paredes como este: são de taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com dous aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos ovos.

Por vezes, no fundo, na frente ou aos lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro, uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes; e, às vezes também, uma touceira de bananeira.

A guaxima cresce, e o capim, e a vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.

O barracão de dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dous. Eram ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhor Romualdo, servente ou cousa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela. Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com dous filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.

A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade:

- Coitada! Uma desgraçada! Uma perdida!

Era bem nova ela, mas fanada pelo sofrimento e pela miséria.

Com os seus vinte e poucos anos de idade, de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a triste história de todas essas raparigas por ai...

Mal comendo, ela e os filhos; mal tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do Camargo, um pão - que lhe teria custado, quem sabe! que profunda provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo - não se esquecia nunca de colher pelo caminho uns "boas-noites", umas flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de manacás, de maricás - o que encontrasse - para enfeitar-se ou trazê-las nas mãos, em ramilhete.

Todos da rua dos Maricás - era este o nome daquele trilho de Inhaúma- conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias á ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é que dizia, se lhe perguntavamquemera:

- Uma vagabunda.

Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central, morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era "rica". Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma cousa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua. Tinha "homem" em quanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca - uma menina. Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era conhecida por "Baianinha". E, ao ir ás compras na venda, o caixeiro lhe dizia por brincadeira:

- "Baianinha", tua mãe é negra.

A pequena arrufava-se e respondia com indignação:

- Negra é tu, "seu" burro!

A Baiana, porém, era "rica", estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas. Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas orgias e barulhadas; mas, inclinava-se para o espiritismo, freqüentando as sessões do "seu" Frederico, um antigo colega do seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o súlfur, eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para o seu uso e dos outros.

Certa vez salvou um dos filhos da Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a prometer que se emendaria.

Dona Felismina morava com o seu filho José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos cuidados dela.

Tinha todos os traços de sua raça, os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.

Era-lhe este seu filho o seu braço direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove ou dez anos de idade. Doce, resignado, e obediente, não havia ordem de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o mais pequeno desvio de caminho. Se ia á casa do "seu" Carvalho, ia até lá, entregava ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:

- Zeca, vai à venda e traz dous tostões de sabão "regador".

Na venda, entre todo aquele pessoal tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitués do parati, como os há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento- entre toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:

- Caixeiro, "mi" serve já. Dous tostões de sabão "regador"!

Se o caixeiro estava atendendo à dona Aninha, mulher do ser- vente dos telégrafos, Fortes, e não vinha atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:

- "Mi despache", caixeiro! Dous tostões de sabão "regador".

"Seu" Eduardo, o caixeiro, que era bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às compras, fazia docemente:

- Espere, menino. Você não vê que estou servindo, aqui, a donaAninha!

A mãe tinha vontade de pó-lo no colégio; ela sentia a necessidade disso todas as vezes que eraobrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha que pedir a "seu" Frederico, aquele "branco" que fora colega de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?

À tarde, Zeca descansava, brincava com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.

Se bem fosse com a mãe todos os meses receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos Guarda-Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantemente as "fitas" que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade. Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um pouco, por lhe tirar a vista do divertimento. Não tinha inveja dos que entravam; o que ele queria era entrar também.

Como havia de ser uma "fita'? As moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar, como é que tudo aquilo falava?


Podia ter dinheiro para ir, pois, em geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro; mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o Carlos que furtava os do próprio pai...
Zeca, por seu procedimento, pela sua dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou buscar a roupa.
Muitos se interessavam com a mãe, para pó-lo em um recolhi- mento, em um asilo; ela, porém, embora quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único "homem".
Uma vez quase cedeu. Oseu" Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de "pinhão", e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:
- Não posso, "seu" coronel; não posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem que é preciso aprender, saber, mas...
- Você vai lá para casa, Felismina; e não precisa estar se matando.
Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão- uma espécie de protesto de posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o coronel Castro, em quem a idade e as

desgraças domésticas tinham mais enchido de bondade o seu coração natural- mente bom, nunca deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia. Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das filhas, dava-lhe sempre qualquer cousa, puxava-lhe a língua, perguntava-lhe pelas suas necessidades.

Certo dia, em começo do ano, o pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde criatura, que não merecesse a atenção do filósolo - o coronel interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.

- Foi tua mãe?

- Não, "seu" coronel.

- Que foi, então, Zeca?

O pequeno não quis dizer e não cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo, de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações; o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.

A atitude do pequeno, a sua recusa em confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que o velho funcionário, já por ternura natural,já por bondosa curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase miserável.



- Dize, Zeca. Dize que eu te darei uma vestimenta de "diabinho" no Carnaval que está aí.

O pretinho levantou a cabeça e olhou com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.

Confessou; e Castro nada disse a ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.

Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a roupa branca que estivera a secar.

Atarefada com esse serviço, ela não viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando um embrulho guizalhanteeum outro, com rasgões no papel, por onde saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma horrível máscara de "diabo".

Dona Felismina veio para o interior do barracão; e pós-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca, distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e, julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre a humilde e tosca mesa de pinho estendeuuma rubra vestimenta de ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o próprio diabo a visse teria medo.

A mãe, ao barulho dos guizos, virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:

- Zeca, que é isso?

Uma visão dolorosa lhe chegou aosolhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais severamente:

- Que é isso, Zeca? Onde você arranjou isso?

- Não... mamãe... não...

- Você roubou, meu filho?... Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você arranjou isso, Zeca?

A pobre mulher quase chorava e o pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe, balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:

- Mas... mamãe... não foi assim...

- Como foi? Diz!

- Foi "seu" Castro quem me deu. Eu não pedi...

Dona Felismina sossegou e o pequeno também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:

- Mas para que você quer isso? Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens? Isso é para gente rica, que pode. Enfim...

- Mas, mamãe, eu aceitei, porque precisava.

- Disto! Ninguém precisa disto! Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!

- Eu precisava, sim senhora.

- Como, você precisava?

- Não lhe contei que há meses, diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina, diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó moleque! - ó moleque! - o negro!- ó gibi!? Não lhe contei?

- Contou-me; e daí?

- Por isso quando o coronel me prometeu a fantasia, eu aceitei.

- Que tem uma cousa com a outra?

- Queria amanhã passar por lã e meter medo aos meninos que mevaiaram.

HARAKASHY E AS ESCOLAS DE JAVA

HARAKASHY E AS ESCOLAS DE JAVA

Tudo o que este mundo encerra é propriedade do brâmane, porque ele, por seu nascimento eminente, tem direito a tudo o que existe." Código de Manu

Na minha peregrinação sentimental por este mundo, fui ter, não sei como, à cidade de Batávia, na ilha de Java.

É fama que os franceses ignoram sobremodo a geografia; mas estou certo de que, entre nós, pouca gente tem notícias seguras dessa ilha e da capital das Índias Neerlandesas.


É pena, pois é da terra um dos recantos mais originais e cheios de surpreendentes mistérios que se vão aos poucos desvendando aos olhos atônitos da nossa pobre humanidade.

Lá, Dubois achou partes do esqueleto do Pithecanthropus erectus; e o doido do Nietzsche tinha admiração por certas trepadeiras dessa curiosa ilha, porque, dizia ele, amorosas do sol, se enrodilhavam pelos carvalhos e, apoiadas neles, elevavam-se acima dos mais altos galhos dessas árvores veneráveis, banhavam-se na luz e davam a sua glória em espetáculo.

Os restos do afastado ancestral do homem que Dubois encontrou, não os vi quando lá estive.

Trepadeiras e cipós vi muitos, mas carvalho não vi nenhum. Nietzsche, que lá não esteve, certamente julgou que Java tinha alguma semelhança com Saxe ou com a Suíça.

Não eram precisos os carvalhos nem as tais trepadeiras, muito vulgarmente, como todas as plantas, amorosas da luz, para tornar java interessante, porque só o aspecto mesclado de sua população, a confusão do seu pensamento religioso, as suas antiguidades búdicas e os seus vulcões descomunais seduzem e prendem a atenção do peregrino desgostoso ou do sábio esquadrinhador.

Por meses e meses, o tédio mais principesco desfaz-se naquelas terras de sol candente e orgia vegetal que, talvez, com a Índia e os grandes lagos da África, sejam os únicos lugares da terra que não foram ainda banalizados inteiramente.

Creio que não será assim por muito tempo. Lá estão os holandeses; e edificaram até, na cidade de Batávia, um bairro europeu. chamado, na língua deles, Weltevreden (paz do mundo), cujas damas se vestem e têm todos os tiques periódicos das moças de Hong-Kong ou de Petrópolis.

Nos olhos das mulheres do bairro europeu não há senão a mui terrena ânsia da fortuna; mas nos olhares negros, luminosos, magnéticos das javanesas há coisas do Além, o fundo do mar, o céu estrelado, o indecifrável mistério da sempre misteriosa Ásia. Também há volúpia e há morte.

A massa de hindus, de chineses, de anamitas, de malaios e javaneses, porém, esmaga a banalidade pretensiosa daquelas holandesas rechonchudas que estão pedindo a sua imediata volta ás monótonas campinas da pátria, com as suas vacas nédias, os seus clássicos moinhos de vento e a ligeira névoa que parece sempre cobri-las, para readquirirem o necessário relevo das suas pessoas.

Não falando no famoso jardim botânico dos arredores, Batávia, como São Paulo ou Cuiabá, possui estabelecimentos e sociedades de ciência e de arte dignas de atenção.

A sua academia de letras é muito conhecida na rua principal da cidade, e os literatos da ilha brigam e guerreiam-se cruamente, para ocuparem um lugar nela. A pensão que recebem é módica, cerca de cinco patacas, por mês, na nossa moeda; eles, porém, disputam o fauteuil acadêmico por todos os processos imagináveis. Um destes é o empenho, o nosso 'pistolão', que procuram obter de quaisquer mãos, sejam estas de amigos, de parentes, das mulheres, dos credores ou, mesmo, das amantes dos acadêmicos que devem escolher o novo confrade.

Há de parecer que, por tão pouco, não valia a pena disputar acirradamente, como fazem, tais posições. É um engano. O sujeito que é acadêmico tem facilidade em arranjar bons empregos na diplomacia, na alta administração; e a grande burguesia da terra, burguesia de acumuladores de empregos, de políticos de honestidade suspeita, de leguleios afreguesados, de médicos milagrosos ou de ricos desavergonhados, cujas riquezas foram feitas à sombra de iníquas e aladroadas leis - essa burguesia, continuando, tem em grande conta o título de membro da academia, como todo outro qualquer, e o acadêmico pode bem arranjar um casamento rico ou cousa equivalente.

Lá, a literatura não é uma atividade intelectual imposta ao indivíduo, determinada nele, por uma maneira muito sua e própria do seu feitio mental; para os javaneses, é, nada mais,nada menos, que um jogo de prendas, uma sorte de sala, podendo esta ser cara ou barata.

Os médicos, que, em Java, têm outra denominação, como vere- mos mais tarde, são os mais constantes fregueses da academia. Estão sempre a bater-lhe na porta, apesarde não ter a medicina nada que ver com a literatura.

Pertencendo à academia de letras - é o que imagino- como que eles ganham maior confiança dos clientes e mais segurança no emprego dos remédios. Assim, talvez, pensem eles e também o povo, tanto que a clínica lhes aumenta logo que entram para a ilustre companhiajavanesa.

E bem possível que as suas letras e a sua fascinação pela academia visem somente tal resultado, porquanto, entre eles, a rivalidade na clínica é terrível e mais ainda quando se trata de competir com colegas estrangeiros. Usam contra estes das mais desleais armas.

Um houve, natural de um pequeno país da Europa e de extração campônia, que só as pôde manter à distância, usando de armas e processos grosseiramente saloios. Estava sempre de varapau em punho e foi o meio mais eficaz que encontrou, para não lhe caluniarem e lhe prejudicarem a clínica.

A literatura desses doutores e cirurgiões é das mais estimadas naquelas terras; e isto, por dous motivos: porqueé feita por doutores e porque ninguém a lê e entende.

O critério literário e artístico dos médicos de Java não é o de Hegel, de Schopenhauer, de Taine, de Brunetière ou de Guyau, eles não perdem tempo com semelhante gente. Não admitem que a obra literária tenha por fim manifestar um certo caráter saliente ou essencial do assunto que se tem em vista, mais completamente do que o fazem os fatos reais. Literatura não é fazer entrar no patrimônio do espírito humano, com auxilio dos processos e métodos artísticos, tudo o

que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do destino. Não, absolutamente não.
Os doutores javaneses de curar não entendem literatura assim. Para eles, é boa literatura a que é constituída por vastas compilações de cousas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfadonho com fingimentos de língua arcaica.
Curioso é que a primeira qualidade exigida em um livro de estudo é a sua perfeita, completa clareza, que só pode ser obtida com a máxima simplicidade de escrever, além de um encadeamento naturalmente lógico de suas partes, evitando-se tudo o que distraia a atenção do leitor daquilo que se quer ensinar.
Vou explicar-me melhor e os leitores verão como os sábios javaneses prendem a atenção, poupam o esforço mental dos seus discípulos, empregando termos obsoletos e locuções que desde muito estão em desuso.
Suponhamos que um médico nosso patrício se proponha a escrever um tratado qualquer de patologia e empregue a linguagem de João de Barros mesclada com a do Padre Vieira, sem esquecer a de Alexandre Herculano. Eis aí em que consiste a literatura suculenta dos doutores javaneses; e todos de lá lhes admiram as obras escritas em tal patoá ininteligível. Darei um exemplo, servindo-me do nosso idioma.
Antes, porém, de dar essa mostra do modo de escrever dos esculápios de lá, dar-lhes-ei o de falar, com uma anedota que me contaram lá mesmo - porque lá há também irreverentes e observadores. Uma família média, tendo o chefe doente e vendo que a moléstia não dava volta com o modesto médico assistente, resolveu chamar uma das celebridades da medicina javanesa. A mulher do doente era quem mais queria isto, porque, embora possam ser excelentes, com todos os bons predicados, nenhuma mulher perde de todo a vaidade; e a visita de uma notabilidade hipocrática fazia falar a vizinhança. Foi chamado o homem, o doutor Lhovehy, uma celebridade retumbante, professor, membro de várias academias, inclusive a de letras e a de história e geografia.

Ele foi de carro, com a visita paga adiantadamente: cento e cinqüenta florins. Em chegando junto ao doente, com três jeitos de mau ator foi falando assim:

- Até agora quem no há tratado?

- O doutor Nepuchalyth.

- Mister é que tenhais sempre atilamento com esses físicos incautos. Eles são homens que não curam senão por experiência e costume; e é tão bom de enganar os néscios não afeitos ao bom parecer dos físicos de valia que dão cor a facilmente serem enganados por eles e o pior é que alguns clientes físicos, oupor contentar todos os do povo e não querer trabalhar ou especular as curas, vão-se com o parecer deles; e porque ser aprazível ao povo faz ao físico ganhar mais moedas, usam logo em princípio as suas mezinhas deles.

Depois de ter pronunciado esse exórdio com toda a solenidade teatral e doutoral, o Garcia de Orta não anunciado, da sublime escola de Java, examinou o doente e receitou em grego. Quase ao sair, a mulherperguntou-lhe:

- Doutor, qual a dieta?

- Polho cozido ou caldo dele.

A mulher voltou para junto do marido, sem ter compreendido a dieta, pois temeu mostrar-se ignorante em face do sábio, indagando o que era polho.

Logo que a viu, o marido ralhou-a com doçura:

- Filha, eu não dizia a você que esses médicos famosos não servem para nada?... Este que você trouxe fala que ninguém o entende, como se a gente falasse para isso... Receita umas mixórdias misteriosas... Sabe você de uma cousa? Continuo com o doutor Nepuchalyth, ali da esquina. Este ao menos tem juízo e não inventou um modo de falar para ele só entender.

O exemplo de que falei acima é o que se encontra em obras de um famoso doutor lá de Java. Cito um único, mas poderia citar muitos. O javanês, doutor de curas, queria dizer: "Sou de opinião que a febre deve ser combatida na sua causa".

Julgou isto vulgar, indigno do seu título e das suas prerrogativas consuetudinárias, e escreveu provocando a máxima admiração dos seus leitores, da seguinte forma:

'Erro, quere parescer-me, é não se atentar donde provém tal febre com incendimento e modorra, para só tratá-la às rebatinhas, tão de pronto como se mesmo fora ela a doença, senão conseqüência muita vez de vitais desarranjos imigos da sã vida e onde o físico de recado achará a fonte ou as fontes do mal que deixa assi o corpo sem os bons e sãos aspeitos de sua habitual composição".

Depois de uma beleza destas, a sua entrada na academia foi certa e inevitável, pois é nessa espécie de pot-pourri de estilos de tempos desencontrados, com o emprego de um vocábulo senil, tirado à sorte; de salada de feitios de linguagem de épocas diferentes, de modismos de séculos afastados uns dos outros, que a gente inteligente de Java encontra a mais alta expressão da sua oca literatura. Há exceções, devo confessar. Continuo, sem me deter nelas.

A ciência javanesa está muito adiantada. Nunca se fez lá a mais insignificante descoberta; nunca um sábio javanês edificou uma teoria qualquer.

Penso que tal se dá por não haver precisão disso; osda estranja suprem as necessidades da mentalidade javanesa.

O sábio da Batávia é o contrário de todos os outros sábios do mundo. Não é um modesto professor que vive com seus livros, seus algarismos, suas retortas ou éprouvettes. O sábio de Java, ao contrário, é sempre um ricaço que foge dos laboratórios, dos livros, das retortas, dos cadinhos, das épuras, dos microscópios, das equatoriais, dos telescópios, das cobaias, tem cinco ou seis empregos, cada qual mais afanoso, e não falta às festas mundanas.

A presunção de cientista, entretanto, não há quem lá não a tome. Basta que um sujeito tenha aprendido um pouco de álgebra ou folheado um compêndio de anatomia, para se julgar cientista e se encher de um profundo desdém por toda a gente, sobretudo pelos literatos ou poetas. Contudo todos desse gênero querem sê-lo e, em geral, são péssimos.

Vou lhes contar um caso que se passou com o doutor Karitschâ Lanhi, quando foi nomeado diretor do câmbio do Banco Central de Java. Esse doutor era professor da Escolade Sapadores, da qual mais adiante falarei, e por isso se julgou no direito de pleitear o lugar do banco. No dia seguinte de sua nomeação, o seu subalterno imediato foi perguntar-lhe qual a taxa de câmbio que devia ser afixada.

- Sempre para a alta. Qual foi a taxa de ontem?

O empregado retrucou:

- 18 5/17, doutor.

O sábio pensou um pouco e determinou:

- Afixe: 18 5/21, senhor Hatati.

O homem reprimiu o espanto e todo o banco riu-se de tão seguro financeiro que lhe caia do céu, por descuido. Não houve remédio senão demitir-se ele uma semana depois de nomeado.

São assim os graves sábios de Java.

Não nos afastemos, porém, do nosso estudo.

Das grandes artes técnicas, a mais avançada, como era de esperar, é a medicina. O tratamento geralmente empregado é o do vestuário médico. Consiste ele em usar o doutor certo traje para curar certa moléstia. Para sarar bexigas, o médico vai em ceroulas; para congestão de fígado, sobrecasaca e cartola; para tuberculose, tanga e chapéu de palha de coco; antraz, de casaca, etc., etc.

Este curioso método foi descoberto recentemente em um pais próximo que o repudiou, mas veio revolucionar a medicina da grande ilha. Os físicos locais adotaram-no imediatamente e aumentaram o preço das visitas e redobraram a caça aos empregos, para atender às despesas com a indumentária e os aviamentos.

Estava a ponto de esquecer-me de falar no ensino da célebre ilha do arquipélago de Sonda, pois tanto me alonguei no estudo dos seus médicos, que vou ter a ele com pressa.

Existe uma universidade com três faculdades superiores: a de "Sapadores", a de "Cortadores", e a de "Físicos". Os cursos destas faculdades duram cerca de cinco anos, mas cada uma delas tem um subcurso menor, de dois ou três anos. A de "Sapadores" tem o de "consertadores de picaretas"; a de "Cortadores", o de "embrulhadores"; e a de "Físicos", o de "cobradores".
Nas margens do Jacarta, rio que banha Batávia, quem não tem um título dado por uma dessas faculdades não pode ser nada, porquanto, aos poucos, os legisladores da terra e a estupidez do povo foram exigindo para exercer os grandes e pequenos cargos do Estado, quer os políticos, quer os administrativos, um qualquer documento universitário de sabedoria.
Todos, por isso, tratam de obtê-lo e é a mais duravicissitude da vida ser reprovado no curso. E raro, mas acontece. Os jovens javaneses empregam toda espécie de meios para não serem reprovados, menos estudar. Essa contingência pueril da "bomba", na sociedade javanesa, leva às almas dos moços daquelas paragens um travo tão amargo de desconforto que toda a felicidade que lhes chegar posteriormente não o atenuará, e muito menos será capaz de dissolvê-lo.
E mesmo que ele se acredite por sua própria iniciativa, mais valiosa e mais segura que os papéis oficiais; por mais aptidões que demonstre sem título- tem que vegetar em lugares subalternos e dar o que tem de melhor aos outros titulados, para que figurem estes como capazes. Ele escreverá as cartas de amor; mas os beijos não serão nele.
Porum curioso fenômeno sociológico, as idéias bramânicas de casta se enxertaram nas caducas concepções universitárias do medievo europeu e foram dar nas ilhas de Sonda, sob o pretexto de ensino, nessa estranha e original concepção do doutor javanês. Aproveito a ocasião para avisar os leitores que essa concepção religioso-universitária também existe na República de Bruzundanga.
Creio, porém, que ela é originária da grande ilha da Malásia donde foi ter àquela república, por caminho que não descobri.
Como todo moço que tem legítimas ambições naquele recanto do nosso planeta, Harakashy, um javanês que foi muito meu amigo mais tarde, conseguiu entrar para a Escola dos Sapadores, a fim de acreditar-se na sociedade em que vivia, e ter o seu lugar sob o sol, com o título que a faculdade dava. Era malaio com muitas gotas de sangue holandês nas veias, mas sem fortuna nem família. No começo, as cousas foram indo, ele passou; mas, em breve, Harakashy desandou e foi reprovado umas dez vezes na universidade.

Em absoluto, não houve injustiça. O meu amigo nada sabia, porque ingenuamente deduzira dos fatos que a principal condição para ser aprovado, nos exames de Java, é não saber. Enganava-se, porém, supondo que tal homenagem fosse prestada a todos. Recebem-na os filhos dos grandes dignitários da colônia, dos ricaços, dos homens de negócios que sabem levantar capitais; mas escolares que não têm tal ascendência, como o meu amigo, estão talhados para engrossar a estatística dos reprovados, a fim de comprovar o rigor que há nos estudos da Universidade de Batávia.

Dá-se isto, não por culpa total dos professores; mas pelas solicitações de toda a sociedade batavense que quer seus lentes universitários, homens de salão, de teatros caros, de bailes de alto bordo; e eles, para aumentar as suas rendas, que custeiem esse luxo, têm que viver ajoujados aos ministros que dão empregos, ou aos brasseurs d'affaires que lhes pedem emprestados os nomes para apadrinhar empresas honestas, semi-honestas e mesmo deso-nestas, em troco de boas gorjetas.

Quem meu filho beija, minha boca adoça- diz o nosso povo.

Em uma sociedade que se modelou assim, não era possível que o meu Harakashy fosse lá das pernas.

Entretanto, eu o conheci e o senti muito inteligente, culto, amigodos livros e todo ele saturado de anseios espirituais. Gostava muito de filosofia, de letras e, sobretudo, de história. Leu-me ensaios e eu achei muito bem escritos, revelando uma grande cultura e um grande poder de evocar.

Mas Java é muito estúpida enão admite inteligência senão nos "sapadores", nos "físicos" e nos "cortadores".

Ainda não lhes disse o que são os tais "cortadores". São estes assim como os nossos advogados e o seu emblema é uma tesoura, devido a ser, senão de regra, mas de praxe, de tradição que

toda defesa ou acusação judiciária tenha o maior número de citações possíveis e tais peças são mais estimadas quando as referências aos autores consultados vêm nelas coladas com os próprios retalhos dos livros aludidos. A tesoura é instrumento próprio para isto e, dessa maneira, enriquece os "cortadores", pois os arrazoados dessa natureza são muito bem pagos, embora lhes estraguem as bibliotecas que alcançam muito baixas licitações quando vão a leilão.

Atribui o desastre da vida escolar do meu amigo ao fato de ele não ter nenhum jeito para qualquer das grandes profissões liberais que a Batávia oferece aos seus filhos.

Se Harakashy nascesse em França ou em outro país civilizado, naturalmente a sua própria vocação encaminhá-lo-ia para uma aplicação mental, de acordo com a sua feição de espírito; mas, em Java, tinha que ser uma daquelas três cousas, se quisesse figurar como inteligente. Não achando campo para a sua atividade cerebral, muito pouco atraído parao estudo das "picaretas automáticas", muito orgulhoso para bajular os professores e aceitar aprovações por comiseração, o meu amigo ficou naquela exuberante terra sem norte, sem rumo, absolutamente sem saber o que fazer.

Ensinava para vestir-se e comer.Etodosqueoconheciam desde menino admiravam-se que, ao infante galhardo dos seus primeiros anos, se houvesse substituído nele um rapaz macambúzio, isolado, amargo e cruel nas suas conversas camarárias, ressumando sempre uma profunda tristeza.

Aos profundos, parecerá vão; aos superficiais, parecerá tolo- tão grandes conseqüências para tão fracas causas.

Não me animo a discutir, mas lembro que o amor tem qualquer cousa de parecido...

Visitei-o sempre. Amei-o na sua desordem de espírito, imensa e ambiciosa de fazer o Grande e o Novo. Em uma das minhas visitas, encontrei-o no seu modesto quarto, deitado em uma espécie de enxerga, fumando e tendo um gordo livro ao lado. Eu entrava sem me anunciar. Trocamos algumas palavras e ele me disse logo após:

- Fizeram muito bem em não me deixar ir adiante.

- E essa!

- Não te admires. Continuo a estudar história e estou convencido).

- Como?

- Lê este manuscrito.

Passou-me então um códice fortemente encadernado em couro. Era o livro que tinha ao lado. Pude ler o titulo: História da Universidade de Batávia com a biografia dos seus mais distintos alunos, por Degni-Hatdy - 1878.

- Quem é este Degni-Hatdy? perguntei.

- Foi um gênio, meu caro. Um gênio de escola... Recebeu medalhas, diplomas, prêmios... Vive ainda, mas ninguém o conhece mais.

- É de interesse, a memória?

- É, e bastante, pois traz a lista dos alunos ilustres da universidade.

- Quais foram?

- Newton, Huyghens, Descartes, Kant, Pasteur, Claude Bernard, Darwin, Lagrange.

- Chega.

- Ainda: Dante e Aristóteles.

- Uff!

- Gente de primeira, como vês; e, quando soube, tive orgulho de ter sido de alguma forma colega deles; mas...

Por aí acendeu um cigarro, tirou duas longas fumaças com a languidez javanesa e continuou com a pachorrabatava:

- Mas, como te dizia, bem cedo tive vergonha de ter um dia passado pela minha mente que eu era capaz de emparelhar-me com tais gênios. E verdade que não sabia terem eles freqüentado a universidade... Vou esconder-me em qualquer buraco, para me resgatar de tamanha pretensão).

Saí. Ainda o vi durante alguns dias; mas, bem depressa, desapareceu dos meus olhos. Pobre rapaz! Onde estará?

CONGRESSO PAMPLANETARIO

CONGRESSO PAMPLANETÁRIO

Urubu pelado não se mete no meio dos coroados Ditado popular


De tal forma se haviam multiplicado os congressos, que foi preciso ser original. Dentro de cada um dos oito planetas, desde o mais bronco, que me parece ser Vênus, até o mais inteligente, que naturalmente deve ser Netuno, não era possível reunir um que não fosse a milésima repartição dos outros anteriores. Congressos nunca foram coisas de primeira necessidade; mas a necessidade do espetáculo tem em todos nós tão fortes exigências como desvios convenientes.
Demais, Júpiter estava em tal estado de adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por ano 200.000$000 de toneladas de aperfeiçoadas farpas de bambus (específico contra as dores de dentes); e os seus filósofos e escritores, graças às modernas máquinas elétricas de escrever,abarrotavam os armazéns das estradas de ferro com bilhões de toneladas de papel impresso. Houve um que, narrando todas as suas conversas e atos do ano, dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo por segundo, escreveu uma obra de 68.922 volumes, com 20.677.711 páginas, das quais 3.000.000 alvas e limpas- as melhores! - significavam as horas de seu sono sem sonhos.
O autor não omitiu nelas nem as ordens aos criados, nem tampouco as frases vulgares que trocamos ao cumprimentar. Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava o peso da obra, e, portanto, o seu valor.
Era unicamente Júpiter que estava assim: o resto dos satélites do Sol vivia sofrivelmente... Como, porém, houvessem descoberto que todos eles estavam ligados por uma força oculta que, embora influindo mutuamente sobre todos eles, pesava mediocremente sobre os destinos particulares de cada um; e, como também fosse preciso

ser original nos congressos- Júpiter propôs, e todos os planetas restantes aceitaram, a reunião de um Congresso Pamplanetário. Era preciso, diziam os embaixadores de Júpiter, formar um espírito planetário, em contraposição ao espírito estelar. Com isso, eles escondiam o secreto desejo de vender aos outros planetas farpas aperfeiçoadas, remédios para calos, toneladas de um literário papel de embrulhos e outros produtos similares de sua atividade sem limites, não esquecendo o fito de conquistar alguns destes últimos ou parte deles.

Todos os outros não viram bem esse propósito de Júpiter; mas este lhes venceu a resistência convencendo-os de que deviam ser originais e chamar a atenção do Universo... O mundo estelar não nos debocha? Altair não está sempre a rir-se sarcasticamente de nós? Aldebarã não nos ameaça com seu rubor? Sirius não nos desdenha? Havemos de lho mostrar.

A reunião - ficou decidido - teria lugar na Terra. Não porque a Terra fosse muito poderosa, mas porque, nos últimos anos, ela instalara nos seus pólos uma imensa buzina que gritava para as estrelas - "Sou o primeiro planeta do orbe, tenho estradas de milhões de metros: sou o paraíso do Universo", etc., etc.

A buzina era indispensável, visto que os caminhos, palácios, jardins e teatros, etc. se destinavam aos extraterrestres e tinham por fim atraí-los, no pensamento de que os estranhos viessem trazer a segura prosperidade dela - a Terra.

O seu povo, todos conhecem-no: é uma gente cheia de uma nevoenta poesia, tema, loquaz, um tanto indolente, mas liberal, por ser relaxada, e generosa, por ser liberal.

São defeitos e são qualidades, mesmo porque, para os povos, não há defeitos nem qualidades; há características, e mais nada.

Os de Júpiter não são assim; são rígidos, duros e frios; e têm dous sentimentos dominadores: o do enorme, que é o seu critério de beleza, e o do dourado.

Um habitante do grande planeta, uma vez na Terra, ao ver pelo crepúsculo o céu banhado de ouro liqüefeito, esperneou de tal modo e de tal modo subiu às montanhas para colhê-lo que nos antípodas houve um terremoto.

Em vendo a cor do ouro, eles saem bufando, com o olhar injetado, em estado de fúria; e saem matando, estripando a indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais; e - curioso - só querem ouro para construir caixões de seis léguas de alturas e seis polegadas quadradas de base. Eis como sentem a beleza... A isso juntamum horror pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os "gatos" são bons; se velhos, têm a candura de criança; se crianças, uma grácil espontaneidade de encantar. Mesmo se não são melhores do que os seus companheiros de planeta, são perfeitamente iguais a eles. Contudo, são doridos e auditivos, o que lhes dá a faculdade de criar uma poesia e uma música próprias, das quais os de Júpiter se aproveitam, à míngua de poder eles mesmos criar essas manifestações artísticas, pois a sua insensibilidade não o permite.

Mas os jupiterianos não os toleram, porque podem os "gatos" votar, embora fossem os próprios algozes destes que lhes tivessem dado esse direito.

Por qualquer de cá aquela palha, os estúpidos jupiterianos se reúnem na praça pública e matam a pauladas, a fogo, à fouce, sem forma de processo alguma, sob o pretexto de que o "gato" queria casar ou namorava uma filha deles. Lá se chama banditismo e é cousa parecida com o linchamento yankee.

Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses "gatos" excepcionalmente tímidos e doces, admirando-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos sofrimentos e humilhações que eles sofrem.

Perseguem-nosde um modo bárbaro e covarde. Chamam-nos de poltrões, mas, quando querem guerrear, socorrem-se deles e os "gatos" se portam bem. Vem a paz, oprimem-nos, encurralam-nos mas, assim mesmo, eles crescem e multiplicam-se... Fraca raça!

Júpiter, como ia dizendo, acudiu ao grito da buzina e reuniu o congresso na Terra.

Na primeira sessão, logo os Jupiterianos falaram na fraternidade de todos os animais do Universo: homens e gatos, burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal de Júpiter até, a esse respeito, fez um discurso muito bonito.

É muito cediça a manobra de Júpiter falar sempre em liberdade, fraternidade, etc. Certa vez, ele declarou guerra a Saturno, para libertar-lhe os povos. Logo, porém, que o venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida. Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província do México, em 1837.

Como todos esperavam, os trabalhos do congresso prosseguiram com grande atividade.

Além de tratar do estabelecimento de pontes pênseis que ligassem todos osplanetas entre si, o congresso votou as seguintes conclusões sobre a perfeita fraternidade animal, estabelecido nos seguintespontos:


a) Não se deveria mais comer qualquer animal (boi, carneiro, porco);

b) As gaiolas dos pássaros deveriam ser aumentadas do dobro, no mínimo;

c) Na caça, uma espingarda não poderia ser carregada com mais de seis grãos de chumbo;

d) Generalizar 05 jogos de bola na sociedade dos cabritos.


O programa era vasto e piedoso; e até um principal de Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena não haver ali muitas beatas que pudessem chorar com tal homem, tão digno de vir a substituir são Vicente de Paulo, porque não é próprio citar Sáquia-Múni.

O povo da Terra- boa gente! - exultou e encheu-se de orgulho por poder mandar às estrelas este grito: "Não comemos mais bois!! Nada temos com as estrelas!"

Houve festas: banquetes e bailes para alguns; luminárias para quem quisesse ver as fantasmagorias surpreendentes nos órgãos de publicidade.


No Céu, porém, Sírius sorriu e Altair mais amarela se fez. Da Plêiade, duas estrelas empalideceram de espanto, e a Aldebarâ quis avisar aos néscios, mas não pôde.

Júpiter vendeu a todos os seus irmãos toneladas de farpas, de remédios para calos, de papel literário; e isto com alguma violência, que me eximo de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio...

Se tais produtos não estavam completamente envenenados, foram, no entanto, deletérios. A Terra banalizou-se; Marte perdeu a inteligência; Vênus, o amor desinteressado; Netuno, a bravura generosa; os "gatos" de todos os planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão dos patrícios.

Sob os bons auspícios de Júpiter, foi assim que se fez a fraternidade animal em todo o sistema planetário.

Sírius nunca mais cessou de sorrir.

CLO

CLÓ

A Alexandre Valentim Magalhães



Devia ser já a terceira pessoa que lhe sentava à mesa.

Não lhe era agradável aquela sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se?

Se as duas primeiras pessoas eram desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...


Estava ali o velho Maximiliano esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas, os homens populares, como ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os freqüentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia deslocado...

A quinta garrafa já se esvaziara e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se. Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e, dela, vinha à salauma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa.

E esse frêmito de vida e luxúria que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda. O "jacaré" não dera e muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um conto e pouco- doce esperança que se esvaía amargosamente naquele crepúsculo de galhofa e prazer.

E que trabalho não tivera ele, doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer batalha...


Logo que ela lhe assomou aos olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto - o "jacaré" - onde encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!

E agora, passado o nevoeiro, onde estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel? E- o que era mais grave - como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?

Com aquele seu olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.

O velho doutor Maximiliano não cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.

Por esse tempo, então, notou ele a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes, examinava a toilette e os ademanes das mundanas presentes.

Na sua mesa, atraindo-lhes os olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia.

E o velho lente olhava tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool.

Pensou, então, em sua filha, Clôdia - a Cló, em família- em cujo temperamento e feitio de espírito havia estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto á toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnifica nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de fúria sagrada de hacante: "Evoé! Baco!"

E essa visão antiga lhe passou pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e berloques caros, chamando muito a atenção de Mme. Rego da Silva que, em companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe.

O doutor Maximiliano, ao ver aquelas jóias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o "jacaré" não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Cló, tão maravilhosa e tão rara. Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos?

Ou de sua mulher só, daquela sua carne apaixonada esedenta que trepidava quando lhe recebia as lições de piano, na casa dos pais?

Não pôde, porém, resolver o caso. Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa.


Era um homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar daraça humana.

Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductílidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar idéias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de iri que despejam frechas ervadas com curaro.

Era o seu último amigo, entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca.

Deputado, como já ficou dito, e rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Cló, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.

O velho Maximiliano nada de definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava. Limitava-se a pequenas reprimendassem convicção, para que o casamento não fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer.

E se isto fazia, era para não precipitar as cousas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um estado para o outro.

- Então, doutor, ainda por aqui? fez o rico parlamentar sentando-se.

- É verdade, respondeu-lhe o velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta... Que toma, doutor?

- Um "madeira"... Que tal o Carnaval?

- Como sempre.


E, depois, voltando-se para o caixeiro:

- Outra cerveja e um "madeira", aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.

O caixeiro afastou-se, levando a garrafa vazia e o doutor André perguntou:

- Dona Isabel não veio?

- Não. Minha mulher não gosta das segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Cló, em casa a se prepararem para o baile á fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?

- O senhor vai?

- Não, meu caro senhor; do Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada de recos-recos, de pandeiros, de bombos, desse estridulo de fanhosos instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Cló vai de preta mina.

- Deve-lhe ficar muito bem... Não posso ir; entretanto, irei á sua casa para ver a sua senhora e a sua filha fantasiadas. O senhor devia também ir...

- Fantasiado?

- Que tinha?

- Ora, doutor! eu ando sempre com a máscara no rosto.

E sorriu leve com amargura; o deputado pareceu não compreender e observou:

- Mas, a sua fisionomia não é tão decrépita assim...

Maximiliano ia objetar qualquer cousa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Mme. Rego da Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade em peso.

O paramentar olhou-os bastante com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam - à passagem dos três: ménage à trois. A sua simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho professor:

-Jantamemcasa?

-Jantamos; e o doutor não quer jantar conosco?



- Obrigado. Não me é possível ir hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá irei tomar um uisquezinho... Se me permite?

- Oh! doutor! O senhor é nosso melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhor. Isabel levanta-se a pensar no doutor André; Cló, essa, nem se fala! Até o Caçula quandoo vê, não late; faz-lhe festas, não é?

- Como isso me cumula de...

- Ainda há dias, Isabel me disse: Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.

A face rígida do ídolo, com grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o contrário:

- Não vá agora recitá-lo.

- Certo que não. Seria inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.

- Sou principiante ainda, por isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.

Fez uma pausa, tomou um pouco de vinho e continuou em tom conveniente:

- O senhor sabe perfeitamente que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma solicitação, alguma cousa a mais que os senhores puseram na minha vida...

- Pois então, interrompeu cheio de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!

Ergueu o copo e ambos tocaram os seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:

- Deu aula hoje?

- Não. Desci para espairecer e "cavar". É dura esta vida... "cavar"! Como é triste dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria! Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Cló deu em tomar banhos de leite...

- Que idéia! Onde aprendeu isso?

- Sei lá! Ela diz que tem não sei que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje tinha tanta fé no "jacaré"...

O caixeiro passava e ele recomendou:

- Baldomero, outra cerveja. O doutor não toma mais um "madeira"?

- Vá lá. Ganhou, doutor?

- Qual! E não imagina que falta me fez!

- Se quer?...

- Por quem é, meu caro; deixe-se disso! Então há de ser assim todo o dia?

- Que tem!... Ora!... Nada de cerimônias; é como se recebesse de umfilho...

- Nada disso... Nada disso...

Fingindo que não entendia a recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no "jacaré".

O deputado aindaesteve um pouco; em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.

O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.

A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores - os alicerces do pais- vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças

tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.

Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...

Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.

Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se, deteve-se umpouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o 'Chuveiro de Ouro", a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido à cabeça naquele momento.

Arrependeu-se que tivesse fito gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso. Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas - logo imaginou - para quê? Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?

E, devagar, se foi indo pela rua em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de

raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de felicidade.

Encaminhou-se direto para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.

Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha naquela música inferior!

Lembrou-se então dos "cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas e as almas daquelas duas mulheres?

Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências- trocas de idéias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.

Quando entrou, o piano cessava e a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:

- É assim que se dança nos Democráticos.

Cló, logo que o viu, correu a abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:

- André não vem?

-Virá.

Mas, logo, em tom severo, acrescentou:

- Que tem você com André?

- Nada, papai; mas ele é tão bom...

Quis Maximiliano ser severo; quis apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais, duvidava, não

acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:

- Você precisa ter mais compostura, Cló. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.

A isto, todos entraram em explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição da filha pelo deputado era a cousa mais inocente e natural deste mundo. Foram jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas informações sobre os préstitos camavalescos do dia seguinte. Os Fenianos perderiam na certa. Os Democráticos tinham gasto mais de sessenta contos e iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte, que era um templo japonês, havia de fazer um "bruto sucesso". Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Cármen...

- Ainda toma muito cloral? perguntou Cló.

- Ainda, retrucou o irmão; e emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas largas...

E Cló, por instantes, mordeu os lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade. Era o seu triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto, limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:

- E essas mulheres ganham?

- Qual! Você não vê que é uma honra? respondeu-lhe o irmão.

E o jantar acabou sério e familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada uma das duas bebidas.

Logo que a refeição acabou, talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se com as senhoras;

não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência... Pedia licença para oferecer aquelas pequenas lembranças de Carnaval. Deu uma pequena caixa a dona Isabel e uma maior à Cló. As jóias saíram dos escrínios e faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um anel; para a filha, um bracelete.

- Oh, doutor! fez dona Isabel. O senhor está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...

- Qual, dona Isabel! São falsas, nada valem... Sabia que dona Clódia ia de "preta mina" e lembrei-me trazer-lhe este enfeite...

Cló agradeceu sorridente a lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como já foi observado, executou alguma cousa triste.

Chegava a ocasião de se prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André, impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho para exibir o seu saber em cousas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o velho disse para o deputado:

- Já ouviu a Bamboula, de Gottschalk, doutor?

- Não... Não conheço.

- Vou tocá-la.

Sentou-se ao piano, abriu o álbum onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.

A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas turquesas. Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos.

Ainda pôde requebrar, aos últimos compassos da Bamboula, sobre as chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim, esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:

"Os teus lábios são como uma fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido dentro".

O doutor Maximilianodeixou o tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clódia, se não falava como o rei Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava desprezada.

A sala encheu-se de outros convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou e Cló, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado; ela tinha tempo...

Dona Isabel acompanhou; e a moça, pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":


Pimenta de cheiro, jiló, quibombô;

Eu vendo barato, mi compra ioiô!


Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo intimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:

Mi compra ioiô!


E repetia com mais volúpia, ainda uma vez: Mi compra ioiô!

HUSSEIN BEN-ALI AL-BALEC E MIQUEAS HABACUC

HUSSEIN BEN-ÁLI AL-BÁLEC E MIQUÉIAS HABACUC

(Conto argelino)

Ao senhor Cincinato Braga



Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma família composta de um velho pai doente e seis filhos varões. Desde muito que o pai, devido aos achaques da idade, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua lavoura; mas, sempre que o seu estado de saúde lhe permitia, tinha o cuidado de correr as suas terras com plantações, que eram de tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras, havendo somente uma parte que era destinada à criação de ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar profundamente, na respectiva universidade, a lei do Profeta e vir a ser um ulemá digno e sábio no Corão.

Áli Bâlec Al-Bâlec era o nome desse filho do velho árabe e esteve de fato no Cairo; mas, bem depressa, abandonou o estudo das santas leis de Alâ e do Profeta e procurou a sociedade dos infiéis.

Foi ter nas suas aventuras à Grécia, onde se demorou muito tempo e adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes e vícios. Não se pode em confiança dizer que os atuais sejam bem netos dos antigos; mas são aparentados. A finura e sagacidade dos últimos para abstrações filosóficas, para especulações científicas, para a análise dos sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras de filosofia, as suas criações científicas e as suas grandes obras literárias, empregam nos nossos dias os atuais na mercancia, no tráfico, no escambo, em que sempre procuram, com a máxima habilidade e sabedoria enganar não só os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.

No Oriente, só há um traficante que não seja enganado pelo grego: é o armênio. Diz-se mesmo lá: o judeu é enganado pelo grego, mas o armênio engana ambos.

Os turcos, de onde em onde, matam estes últimos aos milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio do comprador

cavalheiresco, do homem leal e crédulo, que se vê enganado despudoradamente, e sente que não há, no outro que o ludibriou, nenhum princípio de honra, de lealdade, de honestidade, que as relações entre os homens o exigem.

Ali Bálec AI-Bálec, apesar de ser muçulmano, foi atraído para o meio dos gregos e, com eles, aprendeu as suas espertezas, maroscas e habilidades para enganar os outros.

E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo o escambo dos mares do Levante, indo de Alexandria para Constantinopla, dai para Jafa, deste porto para Salônica, desta cidade para Corfu, perlustrando todos aqueles mares azuis, cheios de história, de lenda, de sangue e piratas, comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião se lhe oferecia.

Ao saber da morte do pai, vendeu logo a feluca que possuia e correu a receber a herança. Coube-lhe uma grande data de terra, coberta de pés de tâmaras, enquanto os irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com laranjeiras, oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte em terrenos de pastagens magras, onde pasciam rebanhos enfezados de ovelhas e cabras.

Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam vivendo.

Áli Bálec Al-Bálec trouxera como sua mulher uma israelita que renegara o Talmude pelo Corão, mas, apesar disso, tinha o maior desprezo pelos muçulmanos, aos quais considerava grosseiros, convencendo de tal cousa o marido a ponto dele não dar mais importância aos seus próprios irmãos.

Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a mulher lhe dizia sempre:

- Esses teus irmãos são uns brutos! Parecem mochos! Uns bobos! Que sandálias! Opano das suas chéchias é barato e sempre está sujo! Deixa-os lá!

Aos poucos, devido aos conselhos de sua mulher, Salisa, da sua

insistência, ele deixou de procurar os irmãos, fez-lhes má cara, embora os filhos deles viessem de quando em quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein, que se ia criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso que a mãe.
Em pouco, Ali ficou inteiramente convencido da sua imensa superioridade sobre os seus humildes e resignados irmãos.
Por ter na sua sala um tapete de Esmirna, serem as suas armas de aço de Damasco, tauxiadas de ouro, julgava os seus manos, que se tinham habituado á simplicidade e à modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras que viviam para além do deserto. Julgando-os assim, esquecia-se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia aquelas cousas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e colhiam, para ele aprender.
Além disso, Áli, como falasse alguns patoás levantinos, julgava-se muito mais que todos os do vilaiete e também, porpossuir jóias de ouro e pedras caras, valendo muitas piastras, imaginava que tudo podia.
Por esse tempo, chegaram os franceses e o caid apelou para todos, a fim de socorrer o bei com homens e valores. Áli ofereceu uma das jóias do seu tesouro e quase por isso foi empalado. O joalheiro do palácio verificou que as jóias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber disso, tomou a cousa como afronta e mandou castigar severamente o doador.
Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais completo desespero, não porque o marido estivesse em risco de vida, mas pelo fato que a fortuna representada por aquelas jóias não era mais que fumaça.
Ali foi solto e jurou que havia de enriquecer de novo. Aceitou sem resistência a dominação francesa e, com alegria, viu que essa dominação trazia uma grande alta para as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.


Seus irmãos, a seu exemplo, aceitaram os francos e continuaram na sua modéstia, observando muito religiosamente as leis do Corão. Áli, já habituado, em pouco se misturou com os infiéis a quem vendia as tâmaras por bom preço e gastava o grosso do rendimento que ia tendo em bebidas, apesar da proibição do Corão, em orgias com os ofidais e funcionários franceses. Construiu um palácio que ele pretendia parecido com aquele do grande califa. Harum Al-Raxid,em Bagdá, conforme é descrito no livro de histórias da princesa Xerazade.

Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos de Áli, porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência de seu pai, que, desde que houvesse muitas tâmaras para vender e, não se precisando desse fruto para o nosso comer diário, não era possível que muita gente as quisesse comprar tão caro. Abundando tinham que vendê-las mais barato, para atingir e provocar os compradores mais pobres.

Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascer os seus rebanhos, sem nenhuma inveja do irmão que parecia rico e os desprezava.

Os seus sobrinhos, de quando em quando, iam às terras do tio e ele, por ostentação, por vaidade e para mostrar riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam para casa dos pais, dizendo:

- Tio Ali é que é gente! Tem tudo!Como ele é rico, por Alá!

Os seus pais respondiam:

- Cada um se deve conformar com o que Alá lhe dá! É bom que prospere, pois tem família... Deus é Deus e Maomé é seu profeta.

Veio a morrer Áli, quando as tâmaras começaram a cair de preço. Herdou-lhe os bens, além da mulher, o seu único filho Hussein Ben-Áli Al-Bálec que tinha todos os defeitos do pai aumentados com os de sua mãe.

Era vaidoso, presunçoso, ávido, desprezando os parentes, para os quais era somítico e avaro, desprezando-os como se fossem animais imundos e tidos em maldição pelas Leis do Profeta. Com os

franceses, entretanto, era mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas maneiras e usos.

Nas gazetas que começaram a aparecer em Argel, Hussein Ben-Áli AI-Bálec era gabado e, apesar das leis do Corão proibirem a reprodução da figura humana, uma delas lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a descer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas próximas, um outro muçulmano possuia uma grande plantação delas, começou apensar que era esta que fazia descer o preço das suas.

Em Argel, sobretudo no vilaiete de Hussein, personificam-se sempre os fenômenos e a sutileza de um plantador de tâmaras não pode bem conhecer, apesar de raça árabe, o filigranado das induções da economia política...

Imaginou logo destruir a plantação e mesmo toda aquela que aparecesse na redondeza. Supôs de bom alvitre ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O dono certamente queixar-se-ia ao caide às autoridades francas; e seria uma complicação. Homem de expedientes, lembrou-se de conseguir do capitão francês da guarnição, AL-Durand OU Al-Burhant, a destruição do plantio rival. Habitualmente, fez-se amigo do rume, encheu-o de presentes, de festas, de bebidas, pois seguia o exemplo de seu pai nesse tocante; e o "cão do cristão" se fez afinal seu amigo. Um dia, depois de uma festa, o militar, que pisava indignamente a terra onde estavam os ossos do seu pai, após muitas queixas de Áli, apiedado do árabe, apressou-se em ir à plantação do vizinho e castigá-lo. Assim fez, com os seus soldados e os ferozes serviçais de Hussein. Houve queixa; o capitão foi punido; mas o saas de tâmaras não subiu nem meio gourde.

As suas finanças iam de mal a pior, a casa magnífica ia dando mostras de ruína e os seus móveis e alfaias deterioravam-se com o tempo. Sua mãe não cessava de censurar-lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua, repreendia-o:

- Vês: as tâmaras caem de preço e tu não tomas providência alguma. Os meus não são assim... Mas tens o sangue de teu

pai... E verdade que teus tios estão vendendo alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham... Se tu não fizeres esforço algum, ficarás como eles, uns macacos aviver em tocas e a dormir em pelegos de cameiro... Xmed, o teu segundo tio, ganhou duzentas piastras em azeitonas e ficou contente. Queres ser como ele?

- Que hei de fazer, mãe?

- Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saúl chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová não ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus que são também agora os meus. Lembra-te de Débora e de Judite e eram mulheres!

Hussein Ben-Ali AI-Bálec não podia dormir com a impressão das palavras de sua mãe. O saas de tâmaras continuava a descer de gourde em gourde, e ele só se lembrava de Áli, de Ornar, de todos aqueles de sua raça que as tinham levado em meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o saas de tâmaras parecia não temer aquelas sombras augustas e ferozes. Descia sempre.

Certo dia, apareceu-lhe um homem que queria falar a sua mãe, Salisa. Era o irmão dela, Miquéias Habacuc. A irmã e o sobrinho acolheram muito bem tão próximo parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava. Miquéias, que era homem esperto em negócios, disse para o sobrinho:

- Filho de minha irmã, tens meu sangue, mas não a minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaac, Baruc, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos outros mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida que é preciosa a eles e a mim, pois ela é deles e também minha. Portanto, tal forem os presentes que tu me fizeres, eu posso purificar-me de ter socorrido um ente que não é de Israel. Dize-o que o rabino me perdoará.

Hussein ficou de pensar e, à noite, conferenciou com sua mãe Salisa.

- Filho, dá-lhe alguns cequins turcos e aquelas jóias falsas que quase custaram a morte de teu pai. Porque - ouve bem - o conselho dele pode ser falaz.

Despertando Miquéias, logo Hussein foi ter com ele e propôs-lhe o escambo. O israelita, ao ver as jóias, nem olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes de tigre na escuridão. Era como se fosse dar um salto de felino. Contou então ao sobrinho como devia proceder.

- Tu que tens o sangue de minhas avós Micaia, que era da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redondeza, mesmo antes de amadurecerem, ficando elas nos pés. Quando for época de colhê-las, colhê-las-ás todas, guardando em surrões nos armazéns de tua casa e não venderás senão quando te oferecerem um lucro que dê a fartar para gastares...

- Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?

- Não importa. As poucas "medidas" em que isto acontecer darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro de modo que o cubras.

Hussein Ben-Ali Al-Bálec descansou um instante a cabeça sobre o peito, depois a ergueu de repente e exclamou:

- Falas com a sabedoria do Profeta, Miquéias Habacuc. Que Alá seja contigo!

Miquéias Habacuc, filho de Uriel de Sepetai, não se quis demorar mais e partiu despedindo-se da irmã Salisa e do sobrinho Hussein Ben-Áli AI-Bálec com lágrimas nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as jóias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo conselho de economia política hebraica.

Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras começaram a ter mais oferta de preço. Vendeu-as com grande lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma certa resistência no mercado, ele as reteve em grande parte; mas, no terceiro ano, ele teve que comprar a produção e viu que ia aumentando o estoque do que, se pode chamar de valorização das tâmaras. Viu bem que se continuasse a comprar a produção, ficaria com ele demasiado aumentado, a sua fortuna comprometida e que fez? Cedeu. As tâmaras começaram a descer gourde a gourde. Teve uma idéia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas encalhavam nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente; vendo, pouco a pouco, os seus coquinhos perdendo o valor, alugou alguns gritadores que berrassem, nas ruas de Argel, a guerreira:

- Vivam as tâmaras! Não há cousa melhor que as tâmaras de Hussein Ben-Áli Al-Bálec!

Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas não vendia mais que dantes. Deu-as de graça e, como toda cousa dada de graça, elas só agradavam desse modo.

Em se tratando de vendê-las, nada! Os surrões de tâmaras aumentavam nos seus armazéns, pois teimava em comprá-las e guardá-las, para que elas não viessem afinal a não valer nada.

O tapete de Esmirna que o pai lhe deixara desfiava-se, empenhou as armas preciosas, também a herança do pai, para comprar mais sacas de tâmaras. Comprou um tapete falso e umas armas vagabundas de um cabila mais vagabundo ainda, para pôr no lugar das antigas preciosidades. Os outros plantadores, que se tinham limitado a colher e vender, iam vivendo das suas modestas plantações; ele, Hussein Ben-Áli AI-Bálec, corria para a ruína certa.

Foi por ai que, novamente, lhe apareceu Miquéias Habacuc, seu tio, homem hábil e esperto nos negócios. Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:

- Rebento da minha querida irmã, pelo Deus de Abraão, de Israel e de Jacó, não te amedrontes: vendi as jóias por um bom preço a um grego, com o que ganhei duas cousas: dinheiro e a glória de ter enganado um cão dessa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta idéia de pagar-me o conselho em jóias falsas não é tua... Isto tem dedo de pessoa inteiramente da minha raça de Mardoc e Malaquias... Isto é de minha irmã! Não foi tua mãe quem...

- Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha alma; socorro da minha vida?

- Emprestei-o aos turcos com bons juros e quando os cobrei, quase me esfolaram. Muito tem sofrido a raça de Israel; mas o que sofri deles, nem contar te posso - ó descendente do grande Al-Bâlec, companheiro de Musa - conquistador das Espanhas!

Acabava de dizer estas palavras, quando entra no aposento em que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloqüente Débora- que, ao dar com o irmão, se põe em prantos, exclamando:

- Irmão do coração, sábio Miquéias! Tu que descendes como eu de Micaia, da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, salva-me pelo nosso Deus de Abraão, de Israel e de Jacó - salva-me!

E a feroz Judite e eloqüente Débora chorou não a sua dor, nem a dos outros, mas o dinheiro que se sumia.

Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava; como a valorização das tâmaras, no começo dando tão bom resultado, viera a acabar, no fim, em desastre completo.

O velho Miquéias, filho de Uriel de Sepetai, coçou as barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro de pêlos cerdosos; depois, faiscando-os malignamente, perguntou ao sobrinho:

- Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro fizeste a operação?

Hussein disse-lhe que fora com o dinheiro dele e o da sua mãe. Miquéias Habacuc, judeu de Salônica, homem esperto e hábil em negócios, sorriu com gosto e demora, dizendo após:

- Tolo que és!

- Por quê?

Habacuc assim falou de súbito, logo imediatamente á pergunta:

- Que me darás em troca pela explicação?

- A última bolsa de cequins de ouro que me resta.

- És generoso e grande, sobrinho meu, filho de Salisa, minha irmã,guarda-a. Ganharemos mais. Fizeste mal em empregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias empregar o dos outros.



- Como, tio Miquéias?

- Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações de câmbio e de banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar a defesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores reduzam à miséria e à desolação esta rica região do Magreb, como dizia o teu grande avô, Al-Bálec. Vamos pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram de fome e não pereçam à míngua por falta de trabalho.

- Não me darão, tio.

- Dar-te-ão, sobrinho do meu coração; dar-te-ão. Chama teus tios, irmãos de teu pai, e os filhos, e convence-os que devem dar as economias que têm, em moeda, para poderes lutar com os que querem acabar com as plantações de tâmaras do vilaiete. Dize-lhes que se não o fizerem as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará tudo deserto, sem água e sem pastagens; e os bens deles nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, perdendo muito, senão tudo.

- E em troca?

- Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os vales em certo prazo.

- Mas...

Nada objetes, meio do meu sangue de Sepetai, mas meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça; não sabes o que é querer ter dinheiro sem trabalhar. Eles aceitarão na certa e, não sendo ricos em breve precisarão de dinheiro. Eu vou pôr um "bazar" com o saco de cequins d'ouro que te resta e farei saber que desconto esses vales teus, em dinheiro ou em mercadoria. O pouco dinheiro que tens atrairá o deles, tu comprarás tâmaras, mas pagarás em vales que vencerão o juro de dois por cento, mas que eu descontarei a vinte, trinta e mais por cento.

- Se não quiserem descontar, tio que és sábio como o mais sábio dos ulemás, como há de ser?

- Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás tudo em dinheiro. Mas teus parentes, precisando de dinheiro, irão, como te

disse, procurar-me. Eu os atenderei imediatamente. A fama correrá e ninguém temerá receber os teus vales.

- Compreendo. E as tâmaras?

- Irás vendendo a bom preço e guardando o dinheiro, deixando que uma grande parte apodreça. Tu viverás na pompa, na grandeza, e um belo dia, em vez de eu descontar vales, adquiro-oscom ágio. Toda a gente quererá os teus valese encheremos as arcas de dinheiro.

- E no fim, no pagamento, como será?

- Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e daqui até lá teremos tempo de agir.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec empregou todas as lábias que lhe ensinou Miquéias Habacuc. Seus tios e primos entregaram-lhe as economias, pois ficaram muito contentes que ele se lembrasse de defendê-los, de impedir a ser completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios homens de todos os afagos, de todas as blandícias, e iniciaram a defesa das tâmaras, que era a própria defesa do vilaiete.

Um único não quis entregar as terras de pastagem. Foi o tio que herdara as terras de pastagem. Dissera o velho:

- As tâmaras não são do gosto de todo o mundo e as que se colhem são de sobra para os que gostam delas. Hão de se as vender barato por força, pois são demais.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec, porém, deu inicio à sua obra de grande eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram, fascinaram a imaginação do povo do lugar e das circunvizinhanças.

O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram cheias de soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas só corriam águas perfumadas - tudo ficou sendo um encanto no seu alcâçar e dependências.

A fama de sua riqueza corria por toda a parte e até, em Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia a boca do povo:

- Se todos fossem como Hussein Ben-Ali AI-Bâlec conquistaríamos todo o Magreb, expulsando os rumes.

O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que havia

naquelas terras entrou para as suas arcas.

As tâmaras subiram de preço, de fato; mas pouco. Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dous. Miquéias Habacuc exultava, com os descontos que fazia e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho. Só a irmã, a feroz Salisa, temia o fim e perguntava ao irmão:

- Como pagaremos tantos vales, se já gastamos o dinheiro deles e temos mais tâmaras guardadas que vendidas?

- Cala-te, irmã que és minha. Ai é que está a minha grande sabedoria.

O dinheiro amoedado desapareceu e os vales de Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao seu valor em cequins; mas, bem depressa, para se comprar com eles um saas de trigo, tinha-se de gastar o duplo do que se gastava antigamente. O povo começava a desconfiar, quando veio rebentar a guerra de Abdelcáder, emir de Mascara. Andava ele precisando de homens e víveres. O emir, que sabia do prestígio de Hussein naquele vilaiete, oferece-lhealguns milhares de libras turcas, para que mandasse homens.

Miquéias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o sobrinho aceite, contanto que o emir lhe compre as tâmaras. O emir acede, paga as mil libras turcas, compra as tâmaras de que não precisava.

E Hussein convence os parentes que devem partir para os goums. Para isso falou como um santo marabute.

Antes da festa do Beirão, época que era marcada para o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa, o tio Miquéias Habacuc, homem hábil e esperto em negócios - cheios todos de ouro, ricos de apodrecer.

No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele tio de Hussein Ben-Áli Al-Bálec, que não quis entrar na defesa das tâmaras.

Durante muito tempo, pastoreou as suas ovelhas e tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje fazem a mesma cousa naquele lugarejo argelino, onde as inocentes tamareiras, se não constituem objeto de maldição, são tidas como simples árvores de adorno.