MÁGOA QUE RALA I

MÁGOA QUE RALA I


Dos chefes de Estado que tem tido o Brasil, o que mais amou, e muito profundamente, o Rio de Janeiro, foi sem dúvida, Dom João VI; e a população da cidade e arredores ainda tem na memória, nos dias contemporâneos, mais de um século após a sua chegada a estas plagas, a lembrança do seu nome. Nas freguesias afastadas do antigo Município Neutro, que conservam até hoje uma forte feição roceira, a recordação do rei bondoso e bonachão é mais viva e o seu nome é pronunciado pela gente mais humilde de tais lugarejos, sofrendo uma abreviatura singular - "Dom Sexto". Os que o precederam e nos governaram como vice-reis e governadores gerais portaram-se na capital da ilimitada colônia portuguesa como simples funcionários, executores de ordens dos reis, ministros, conselhos, mesas disto e daquilo, sem olhar sequer as árvores, o céu, as cenas que os cercavam e muito menos a gente da terra. Acredito que, com a sua empáfia de fidalgos avariados, muitos deles duvidassem da humanidade dessa última e se aborrecessem com a natureza local, pululante e grandiosa. Não se pareciam com as cousas semelhantes de Portugal e não se podiam medir pelo estalão delas; não prestavam, portanto. A gente, para eles, um pouco mais que animais, eram uns negros à-toa; e a natureza, um flagelo de mosquitos e cascavéis, sem possuir uma proporcionalidade com o homem, como a de Portugal, que pareciaum jardim, feito para o homem. Mesmo os nossos poetas mais velhos nunca entenderam a nossa vegetação, os nossos mares, os nossos rios; não compreendiam as nossas coisas naturais e nunca lhes pegaram a alma, o substractum; e se queriam dizer alguma coisa

sobre ela caiam no lugar-comum amplificado e no encadeamento de adjetivos grandiloqüentes, quando não voltavam para a sua arcadiana e livresca floresta de álamos, plátanos, mirtos, com vagabundíssimas ninfas e faunos idiotas, segundo a retórica e a poéticadidáticas das suas cerebrinas escolas, cheias de pomposos tropos, de rapé, de latim, e regras de catecismo literário.

Se, nos poetas, o sentimento da natureza era esse de paisagens de poetas latinos, numa diluição já tão exaustiva que fazia que os autores do decalque se parecessem todos uns com os outros, como se poderia exigir de funcionários, fidalgos limitados, na sua própria prosápia, uma maior força original de sentimento diante dos novos quadros naturais que a luminosa Guanabara lhes dava, cercando as águas de mercúrio de suas harmoniosas enseadas?

Dom João VI, porém, nobre de alta linhagem e príncipe do século de Rousseau, mal enfronhado na literatura palerma dos árcades, dos desembargadores e repentistas, estava mais apto para senti-los de primeira mão, diretamente. Podia ele, perfeitamente, amar o passaredo alegre na plumagem e triste no canto, a gravidade alpestre de cenários severos, os morros cobertos de árvores de insondável verde- escuro, que descem pelas encostas amarradas umas às outras, pelos cipós e trepadeiras, até o mar fosco que muge ao sopé deles.

O sucesso de Rousseau entre a alta fidalguia do seu tempo foi um estranho acontecimento que hoje surpreende a todos nós, tanto mais que não se passa uma geração e vem ele a ser amaldiçoado pelos filhos e netos dos que o festejaram, como sendo um dos autores do 89 e do rubro 93.

Antes disso foi ele o enfant gâté da grande nobreza e da grande burguesia que àquela se assemelhava nos gestos, nos gostos, nos vestuários, em tudo, enfim, até no modo de assinar o nome.

Depois dos seus primeiros sucessos musicais e literários, mesmo antes com a sua mãe-amante, Mme de Warens, Jean-Jacques foi o mimo, o autor predileto da alta nobreza e da grande burguesia, que esperavam

a guilhotina da Grande Revolução lendo as suas declamações e objurgatórias contra a civilização. Sempre lido por elas, sempre por elas agraciado e socorrido, ambas sorveram com lágrimas nos olhos as palavras do genebrino, cujas obras deviam inspirar e sustentar o ânimo do sumo pontífice da guilhotina - Robespierre. E Rousseau, nas festanças e bailes do rico financeiro Dupin, avô ou coisa parecida de George Sand que, numa edição das Confessions, prefaciada por ela, se confessa fiel ao espírito do comensal de seu avô, naquele lacustre castelo de Chenonceaux, erguido a capricho sobre as águas do Cher; é Mme d'Épinay, é a marechala de Luxembourg, é o marquês de Girardin, é o príncipe de Conti, é Frederico II, é o marechal, governador de Neuchâtel, em nome deste último, e tantos outros magnatas do tempo.

Dom João VI devia tê-lo lido e, sendo desgraçado três vezes, como filho, como marido e como rei, havia de encontrar a sua alma bem aberta para lhe receber as lições e compreender de modo mais amplo a natureza, de modo a ser solicitado para um convívio mais íntimo com as árvores, com os regatos, com as cascatas, fossem elas civilizadas, bárbaras ou selvagens.

Fugindo do seu reino, trazendo consigo a mãe louca, que pedia, ao embarcar em Lisboa, andassem mais devagar, para não parecer que fugiam; obrigado pelo seu nascimento e as condições particulares do seu estado, a suportar uma mulher que perdera toda a conveniência, todo o pudor e todo o respeito a si própria, nos seus desregramentos sexuais - o pobre rei, gordo, glutão, tido como estúpido, desconfiado da sua paternidade oficial, só encontrava na música e nos aspectos naturais derivativos para a sua muito humana necessidade de efusões sentimentais.

Na sua vida de grandes mágoas e profundas dores, o seu desembarque no Rio com certeza foi para a sua alma uma aleluia. A augusta beleza do cenário natural, a sua originalidade imprevista e grandiosa - sem atingir o incompreensível do desmedido e do colossal, a efusão filial de toda uma bizarra população de brancos, índios, negros e mulatos, quase toda a chorar, provocaram muito naturalmente

a simpatia, fizeram-lhe logo brotar no coração uma grande afeição pelo lugar, animaram-no novamente a viver, sentir-se rei de fato- Rei - o chefe aceito voluntariamente, como pai e senhor, por todos aqueles súditos longínquos que o viam pela primeira vez.

Dom João, diz Oliveira Lima, caminha sereno, com a melancolia a fundir-se ao calor da simpatia que o estava acolhendo.

Para bem ver a terra, então, ele se esqueceu dasquinze mil pessoas que o acompanhavam desde as margens do Tejo, daqueles quinze mil "desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades, e freiras, monsenhores e castrados - enxame de parasitas imundos", como diz Oliveira Martins, que aportava emSão Sebastião para esvair quotidianamente a Ucharia Real e enchê-la em troca de zumbidos de intrigas, mexericos e alcovitices.

E o rei pagou bem o carinho filial com que o Rio de Janeiro o recebeu; foi grato. Tratou logo de arranjar uma nobreza da terra, que ele mesmo dizia não ser "nobreza" mas "tafetá"; protegeu José Maurício e autorizou que a sua desgraciosa mas sagrada figura de rei, de nobre da mais alta e pura fidalguia, apesar da filha do Barbadão, fosse pintada na tela por um pobre pintor mulato, José Leandro, que nunca vira a Itália, nem museus, nem academias, e talvez até nem tivesse mestres.

Mas, não foi só aí que mostrou a sua gratidão para os afagos recebidos por ele, na sociedade da Guanabara; não o foi também, unicamente, nas instituições de ensino e outras que criou; foi para a terra que o seu agradecimento se voltou, foi para a sua beleza de que se enamorou, onde quis deixar as marcas e o penhor do grande amor que ela lhe inspirara.

De fato, não há lugar no Rio de Janeiro que não tenha uma lembrança do simplório rei erisipeloso e gordo. De Santa Cruz à ilha do Governador, numa distância de vinte léguas, as há por toda parte; da ilha do Governador à Gávea, também; e no centro da cidade são inúmeras.

Com as más entradas daqueles tempos, talvez pouco piores que

as de hoje, é incrível como esse homem, tido por preguiçoso, indolente, vadio, vencesse tão grandes distâncias, andando de um lado para o outro, só para gozar os pinturescos e pitorescos recantos de sua improvisada capital ultramarina.

Hoje, com bondes elétricos, automóveis e o mais, os nossos grandes burgueses, alguns, dados todos os descontos, mais ricos do que o príncipe regente, só sabem amontoar-se em Botafogo, em palacetes de um gosto afetado, pedras falsas de arquitetura, com as tabuletas idiotas de "vilas" (sic) disto ou daquilo.

E não era só o rei; a própria rainha foi-se para Botafogo, hoje "melindroso" e "encantador" mas, naquele tempo, roça perfeita; Von Langsdorff, cônsul geral da Rússia, tinha uma fazenda na raiz da serra, onde cultivava em larga escala a mandioca; Chamberlain, também cônsul-geral, mas da Inglaterra, era proprietário de uma chácara em Santa Tereza, para caçar borboletas e plantar café; um emigrado político, o conde de Hogendrop foi morar como simples roceiro da terra, nas Águas Férreas; e o pintor Taunay, membro do Instituto de França, que veio com a missão artística de Lebreton, foi residir com toda a família, nas proximidades da cascatinha da Tijuca.

A nossa burguesia atual, porém, é panurgiana e, por isso, banaliza tudo em que toca ou de que se utiliza. Darwin, quando passou por aqui, em 1832, habitou durante os belos meses cariocas de maio e junho uma pequena casa de roça, nas cercanias da baía de Botafogo. É impossível, diz ele, sonhar nada mais delicioso do que essa residência de algumas semanas em país tão admirável! Hoje, se ele visse esse subúrbio do Rio de Janeiro, com as suas casas quase todas iguais em pacholice; com os seus jardins econômicos de terra e, mais do que isso, avaros; com a sua aristocracia de melindrosas desfrutáveis e encantadoras com o espírito nas pontas dos dedos, ambos, machos e fêmeas, estetas de cinemas; com os seus verdadeiros e falsos ricos, arrogantes e ávidos; com os seus lacaios e badauds do luxo de pacotilha que lá impera; como não se recordaria da meiguice primitiva do lugar, quando por ali ele caçava "planárias", classificadas por Cuvier como vermes intestinais, mas que, por sinal, não se encontram nos intestinos de qualquer animal; como lhe dariam saudades a

música vesperal e dissonante iniciada pelas cigarras estridentes, e seguida pelo coaxar de rãs e sapos e pelo chiar dos grilos, com a iluminação instantânea dos pirilampos? Mas, a nuvem pardo-azul, que nos grandes dias de luz funde ao longe as cores e as nuanças, observada pelo sábio inglês, ainda se pode ver aquele célebre recanto do Rio de Janeiro. Os burgueses não se erguem da terra; não escalam o céu. Isso é coisa para titãs... A nossa plutocracia, como a de todos os países, perdeu a única justificação da sua existência como alta classe, mais ou menos viciosa e privilegiada, que era a de educadora das massas, propulsora do seu alevantamento moral, artístico e social. Nada sabe fazer de acordo com o país, nem inspirar que se faça. Ela copia os hábitos e opiniões uns dos outros, amontoa-se num lugar só, e deixa os lindos recantos do Rio de Janeiro abandonados aos carvoeiros ferozes que, afinal, saem dela mesma.

Encarando a burguesia atual de todo gênero, os recursos e privilégios de que dispõe, como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais, e não se compenetrando ela de ter, para com os outros, deveres de todas as espécies, falseia a sua missão e provoca a sua morte. Não precisará de guilhotina...

É bom lembrar, porém, já que falávamos em Darwin, que ele - e não podia deixar de fazê-lo - se refere também ao Jardim Botânico; e este recanto do Rio de Janeiro, tão peculiar á cidade que é até um dos seus emblemas, fala ainda de Dom João VI. Até bem pouco tempo, era o lugar predileto para os passeios burgueses e familiares. Era o lugar dos piqueniques ou convescotes; e, aos domingos e dias de festas, quem lá fosse, encontraria, sombra das suas veneráveis árvores, famílias e convivas, criados e mucamas e noivos, a comer o leitão assado e o peru recheado, votivos á boa harmonia e felicidade dos lares, em dias de sacrifício doméstico do nosso culto aos penates. Foram proibidos, e o Jardim Botânico só ficou lembrado por causa de uma casa rústica que havia defronte dele, espécie de hospedaria disfarçada em que, à noite, se realizavam pândegas alegres de rapazes e raparigas que não tinham o que perder. Assim mesmo, entretanto, ele não se agüentou na memória dos cariocas passeadores.

Como Silvestre, a Tijuca e o modemo Sumaré, passou da moda. Hoje é em Copacabana e adjacências que se realizam as pândegas e se epilogam tragédias ou comédias conjugais. O Jardim Botânico, porém, ficou sossegado, quieto entre o marbem próximo e a selva verde-negra que cobre os contrafortes do Corcovado ao fundo, polvilhada de prata após as grandes chuvas, lançando sobre os que o abandonaram o desdém de suas palmeiras altivas e titanicamente para o céu, á espera de que, para as suas alfombras, voltem as famílias em festança honesta e os amorosos irregulares em transportes sagrados, a fim de abençoar, quer umas, quer outros, debaixo das arcaicas góticas dos seus bambus veneráveis.

Conquanto tenha tido a primazia de nortear, para o seu portão, a primeira linha de bondes que se construiu no Rio de Janeiro, de uns tempos a esta parte o jardim deixou de ser falado nos jornais, nas crônicas elegantes, não mais foi escolhido para festividades mundanas a estrangeiros de distinção efêmera; e a massa dos cariocas desabituando-se de lhe ouvir o nome, nem vendo a sua alameda senhorial de palmeiras nas notas do Tesouro, esqueceu-se daquele pedaço da cidade, que é bem e só ele mesmo, ele unicamente, sem semelhança com outro.

Um belo dia de anos passados, porém, nas primeiras horas da manhã, logo após o café, abrindo os jornais, deram os cariocas com a primeira página de quase todos os quotidianos ocupada com uma longa notícia, entremeada de gravuras macabras e fisionomias satisfeitas de policiais em diligência.

Cada qual das gazetas tinha mais títulos e subtítulos e cada qual destes era mais campanudo e inexplicável. Leram a notícia e, em suma, tratava-se do seguinte: tendo fechado o jardim, os guardas, conforme mandava o regulamento, passaram revista a todo ele. Davam-na por acabada, quando um deles encontrou, na borda de um gramado, um punhal esquisito, "esquinado", dizia ele, com uma inscrição na face da lâmina. Era simples e em espanhol o mote: Soy yo! O achado intrigou-o, esquadrinhoumelhor os arredores e veio a dar, dissimulado em uma moita, com o cadáver de uma mulher com o rosto arroxeado e congestionado, inteiramente vestida, só com

chapéu fora do lugar, mas, posto por outra mão ao lado dela. Parecia estrangeira. De súbito e de forma tão tétrica, foi arrancado do esquecimento a lembrança do velho jardim real; e ele surgiu a todos da cidade com uma auréola de martírio, feita da ingratidão de toda uma população a cujos país e avós, sem nada lhes pedir, ele soubera dar tantos instantes de alegria e amor.

Os jornais lembraram a sua história, a sua fundação pelo rei Dom João VI, os benefícios que havia prestado com fornecimentos de sementes de plantas úteis ou "mudas" de variedades de cana-de-açúcar; lembraram a plantaçãode chá que lá houvera, sem esquecer de louvar as esguias e majestosas palmeiras, uma das quais, plantada pelas próprias mãos do rei, estava morrendo de velha.

O inquérito veio a correr, ou melhor, a arrastar-se sem esperança de resultado; e a inscrição em espanhol, no punhal, fazia que as autoridades policiais prendessem, não só todos os súditos do rei da Espanha que encontravam à mão, como também colombianos, argentinos, chilenos, e até um filipino azeitonado foi preso, apesar de ser um simples e inofensivo malaio vagabundo e cabeludo, que vivia a catar ervas medicinais para vendê-las aos herbanários da rua Larga e aos chefes de macumbas e "candomblés" dos subúrbios longínquos. Tudo em pura perda.

A vítima foi identificada. Era uma criada alemã, arrumadeira de um grande hotel de luxo do Silvestre ou de Santa Tereza, que, nos seus dias de folga ou licença, gostava de passear pelos arredores da cidade e beber cerveja em toda parte. Todos os freqüentadores de casas de chopes conheciam aquela pequena alemã,de Baden, rechonchudinha, polpuda que nem um repolho, com os malares sempre rosados, possuidora de um perfeito aspecto de boneca alemã de carregação, que bebia mais do que os patrícios, rindo e estalando as palavras no duro e gutural alemão, cuja famíliadiziam ser de camponeses de um lugarejo do grão-ducado. Os seus papéis eram cartas dos pais, de irmãos e parentes, além de lembranças de uns e outros, como

retratos, sem mais outro traço sentimental que não este da família; e sobre o seu cadáver foram encontradas as jóias que a sua modesta condição permitia possuir: um anel de pouco preço, umas bichas de ouro e brilhantes mas de valor pouco considerável, um par de pulseiras, algum dinheiro e mais nada.