MAGOA QUE RALA II

MAGOA QUE RALA II


O doutor Matos Garção era quem conduzia o inquérito; mas esse moço, feito delegado de polícia, por empenhos de políticos do interior e sendo ele mesmo de São Sebastião de Passa Quatro, pecava por inteiro desconhecimento do Rio de Janeiro, de forma que, apesar de ter alguma inteligência, andou dando por paus e por pedras, cego, tonto, numa descontinuidade de esforços de causar riso e pena.

Houve até uma diligência que, inspirada por ele, parecia encaminhá-lo para a descoberta do assassino da pequena Graüben Hunderbrok; mas que ele não asoube aproveitar. Tendo observado que muitos desses imigrantes espontâneos chegam ao Rio de Janeiro, com passagem por Buenos Aires, conseguiu obter da polícia argentina informações a respeito da alemãzinha assassinada. De lá, noticiaram que ela estivera naquela cidade do Prata, havia já quatro anos, quando, tendo vinte e três de idade, viera de França, de Paris, acompanhando uma família rica argentina, como criada. Meses depois, poucos, quatro, se tanto, despedira-se bruscamente e subitamente embarcara para a Guanabara. Era o que informaram as pessoas da família Avendaña, com a qual aportara em Buenos Aires. Um casal de alemães, cujo marido tinha um emprego secundário nas oficinas da Cervejaria Brama, sem ser solicitado, depôs perante o delegado. O que havia de importante, no depoimento dele, era que Graüben tinha na sua com- panhia um filho de quatro anos, a que dera à luz alguns meses após a sua chegada de Buenos Ayres. O exame médico-legal tinha já indicado essa maternidade que ela parecia querer ocultar.

O punhal foi bem examinado; mas apesar de parecer a todos uma arma de luxo e antiga, cabo de prata lavrada, guarda de aço com

arabescos tauxiados e a tal inscrição sibilina- Soy yo! na lâmina também tauxiada de arabescos, nenhum dos armeiros, chamados para quesitos, se animavam a dizê-lo autêntico, hesitavam na determinação de sua procedência, uns queriam-na toledana, outros italiana das primitivas armas da Renascença e alguns mesmo chegaram a pensar em uma imitação, para "engazopar" os colecionadores "rastas" da América do Sul. A bainha não foi encontrada; a adaga estava imaculada de sangue, pois a morte se dera por estrangulamento, tendo o assassino simplesmente esganado a rapariga com ambas as mãos.
Ia assimo inquérito, cansando todos: delegado, escrivão, comissários, guardas, agentes, polícias de farda, "encostados", jornalistas e o público; e já o doutor Matos, de São Sebastião de Passa Quatro, se resolvera a fechar a semana "espanhola" e inaugurar a "germânica" com a detenção de muitos alemães, quando a 22 de junho, isto dias depois do assassínio, surge na delegacia um rapaz de vinte e poucos anos de idade, boa aparência, que se acusa como autor do homicídio do jardim.
Chamava-se ele Lourenço da Mota Orestes e era empregado nos Telégrafos, em um modesto lugar, sendo muito estimado pelos chefes, superiores e colegas, pela sua reserva, sua assiduidade e obediência. Fora, antes, empregado no comércio, onde seu pai era também muito estimado e considerado, pela sua honestidade e rigor no cumprimento das suas obrigações. Tinha este um grande "bazar" muito apregoado, pelas bandas do Estácio de Sá, onde comerciava com toda a lisura, não tendo por isso grande fortuna, empregando quase toda a renda da loja nas suas despesas de família.
Lourenço, ao entardecer daquele úmido dia de junho de..., chegou à delegacia e disse precisar falar ao delegado sobre o assassínio da alemãzinha. Estava já a autoridade muito enfarada com o caso e demorou razoavelmente em recebê-lo. Devido à insistência do rapaz, veio a ser ouvido duas horas depois de sua chegada. Logo que se aproximou do doutor Matos, disse-lhe sem mais detença que confessava

ser ele o matador de Graüben. O jovem bacharel de São Sebastião de Passa Quatro estremeceu na ampla cadeira, levantou-se como se fosse impelido por uma mola, e, acompanhando a fala com um olhar desvairado, perguntou ao rapaz, para quem tinha a mão direita estendida, apontando-o dramaticamente, com o dedo indicador:

- Foste tu, então?

- Fui, doutor, disse o rapaz serenamente.

Tocou o delegado a campainha, chamou os seus auxiliares, aos quais disse em tom de grande satisfação:

- Está ali (apontou) quem matou a alemã no jardim.

Todos exclamaram a um só tempo:

- Este!

O delegado, de novo apontando para o rapaz, confirmou:

- Sim; é este.

Perguntou em seguida ao Lourenço:

- Não foste tu?

- Fui, doutor.

Determinou, então, o doutor Matos Garção que o metessem no xadrez; que o vigiassem muito e não deixassem conversar com ninguém. Logo que o rapaz se encaminhou para a prisão da delegacia, onde estavam os xadrezes, ordenou ao prontidão que telegrafasse ao chefe, aos auxiliares, à Associação de Imprensa, a todos os jornais, convidando todos para assistir à confissão do criminoso.

Com tal notícia, a cidade teve um contentamento de alívio e alguns, curiosos de ver o assassino e talvez ouvir-lhe a confissão que a nova estampada à porta dos jornais tinha feito encaminharem-se para o posto policial longínquo, tiveram que esperar até quase às onze horas da noite o momento de serem satisfeitos e dele saíram nas imediações da madrugada.

O chefe e os policias graúdos chegaram às nove horas, os repórteres dos principais jornais pouco depois, mas faltava o do O Arauto do Povo, um jomal ainda novo, mas de grande venda, que chegou pelas proximidades das onze horas e foi esperado devido às ordens do chefe, pois O Arauto fazia-lhe uma oposição cega e queria ele provar à sua redação o quanto eram infundados os seus artigos.

Tendo chegado, afinal, o repórter, seguido de fotógrafo como

alguns outros, o criminoso foi introduzido.

Antes, tinham os jornalistas tirado aspectos da "mesa", como chefe de polícia, auxiliares, delegados, escrivão, sentados, e, de pé, às costas destes, inspetores, guardas, polícias, etc.

O moço entrou e puseram-no em uma cadeira próxima ao delegado distrital que esperou, para tomar por termo a confissão, que os fotógrafos "batessem" a chapa à luz da explosão do magnésio.

No começo, correu tudo em ordem e o acusado, com voz firme, articulando distintamente palavra por palavra, disse o seu nome, a sua filiação, ter vinte e cinco anos de idade, etc., etc. Narrou como se dera o crime. Tendo, todos os anos, quando podia gozar férias, aí pelo mês de junho, o hábito de vir passar os quinze dias delas em casa de seu amigo Leopoldo Martins Barroca, nos arredores da praia do Pinto, da lagoa Rodrigo de Freitas, viera como de costume naquele ano. Gostava de passá-los aí, pois, com a sua família, até aos quatorze anos, antes de estabelecer-se seu pai, ao deixar de ser feitor do jardim, ele residira naquelas redondezas das quais guardava as mais suaves recordações. Naquele dia, 14 de junho de..., o do assassínio, tendo almoçado com a mulher e os filhos do seu amigo, sem ele, pois o fazia mais cedo para não perder o seu ponto no Arsenal de Marinha, onde era escrevente, saiu e foi ler o Jornal do Comércio na venda do "seu" Eduardo, que ficava justamente na praia, fazendo esquina com a rua do Pau, em que estava a casa do seu hospedeiro amigo.

Lera a folha vagarosamente e dera-lhe vontade de ir ao jardim passear. Assim fizera e, vagando pelas alamedas, naquele dia de semana, silenciosas e desertas, encontrara com aquela alemã que, só agora, pela leitura dos jornais, soube chamar-se Graüben. Travara, a propósito não se lembra de quê, conversa com ela. Ria-se muito a moça, com um riso estreito e de pouca duração, com propósito ou não, e pareceu-lhe, por diversos gestos, ter-se ela apaixonado por ele. Em um dado momento, quis beijá-la, ela o repeliu, mas continuou a conversar com ele como se nada tivesse havido, no seu mau português.

Chegando a um lugar mais sombrio, repetiu a tentativa de abraçá-la e beijá-la e repetiu com mais força e decisão. Ela, a alemã

se enfureceu e arrancou não sabia de que dobra do vestido, o punhal que foi encontrado, tentando feri-lo. Foi por esse tempo que, desvairado pela luxúria, pelo despeito, pelo medo - tudo isto misturado e multiplicado levou-o a agarrar a rapariga pelo pescoço, com ambas as mãos, cheio de frenesi apertou-o loucamente, cegamente e, quando pôde refletir, viu que ela estava morta. Vendo-a assim, ocultou o cadáver em uma moita e saiu muito naturalmente, aí pelas três horas da tarde. Foi para a casa de que era hóspede e, ao dia seguinte, no noturno, embarcava para São Paulo, onde estivera até à véspera daquele dia 22.

Essa parte principal do depoimento correu bem, mas logo que o acusado deu por finda a acusação que fazia a si mesmo, todos começaram a interrogá-lo, quase a um só tempo - chefe, delegados, comissários, jornalistas, homens do povo e até polícias.

Apesar da barafunda, a todos respondia com calma e precisão, mesmo porque, em geral, as perguntas eram as mais idiotas possíveis ou não tinham relação alguma com o torpe crime do Jardim Botânico.

No dia seguinte, os jornais, pejados de retratos e outras gravuras, traziam longas notícias, com os comentários do costume e alguns elogiavam o chefe, outros calavam-se a tal respeito; mas, todos eram acordes em tachar de revoltante o criminoso, tipo verdadeiramente lombrosiano, pelas feições e pela cínica calma dos delinqüentes natos.

A não ser a calma, não havia nada de verdade nisso. O rapaz era bem parecido e conformado de corpo e rosto, mais alto que baixo, branco sem jaça, robusto mais do que a média; e tinha um olhar agudo, por vezes agudíssimo, mas sempre meigo e triste, onde havia muito de vago e de melancolia.

No dia seguinte, começaram a interrogar as pessoas aludidas na confissão pelo criminoso. Dous guardas do jardim reconheceram-no; um, porém, dizia que o vira entrar na véspera do crime, no dia de santo Antônio; entretanto, o outro jurava que ele estivera no jardim, a 14, por sinal que o avistara, nas proximidades do chafariz, quando ia o visitante dobrar a alameda à esquerda e perpendicular à principal da entrada.


Este depoimento, se bem que fosse confirmado, mais tarde e em acareação como protagonista da tragédia, estava em contradição com muitos outros. Dona Zilda, a mulher do amigo em cuja casa Lourenço estivera hospedado, depôs dizendo que, no dia do crime, o seu hóspede lhe chegara à casa, aí pelas três horas e pelos fundos, pois era seu hábito, depois de ler o jornal na venda, descer a praia, embrenhar-se na restinga, chupar cambuim, pitangas, frutas de cardo, mexerica, qualquer fruta silvestre e voltar para a casa pelos fundos que davam para a restinga do Leblon. Perguntada se era costume dele ir ao jardim, disse que sim, parecendo-lhe até que, no dia de santo Antônio, lá fora.

O proprietário da venda, o senhor Eduardo Silveira, mais ou menos confirmou o depoimento de dona Zilda. Disse que, deixando o senhor Lourenço de ler o Comércio pelas duas horas, o vira descer à praia, como era do seu hábito, procurar um atalho que levava á restinga; e não acreditava que tivesse ido ao jardim, naquele dia, por aquelas horas, pois estava sem colarinho nem gravata, não se entrando, como é sabido, naquele logradouro público sem esses complementos do vestuário.

O marido de dona Zilda,o amigo de Lourenço, pouco sabia, mas asseverava que ele fora ao jardim, a 13, dia de santo Antônio, pois, tendo ficado em casa para remendar uma cerca e concertar o galinheiro, o vira sair completamente vestido, convidando-o, a ele, depoente, a acompanhá-lo, o que não fez, e com isso desculpou-se, por ter de executar aqueles servicinhos caseiros.

Reinquirido, à vista do depoimento do vendeiro, a respeito de como tinha podido entrar no jardim sem colarinho, nem gravara, explicou Lourenço que obtivera esses dous objetos no caminho de Jorge Turco, nas Três-Vendas, e os colocara no pescoço, nos fundos do botequim do canto da estrada de Dona Castorina.

Jorge Turco, convidado a depor, afirmou nunca ter vendido um alfinete ao rapaz, que conhecia, entretanto, por lhe passar pela porta do negócio em companhia do "seu" Leopoldo da rua do Pau, um dos seus bons fregueses e a mulher também.


O dono do botequim dissera que, de fato, um dia destes da semana passada, tinha consentido que ele fosse aos fundos do seu negócio, mas não sabia ao certo o dia e não podia garantir que, para lá entrasse sem colarinho e gravata. Com eles, saiu; disso, tinha memória.

Apesar de toda essa confusão de depoimentos que resultava em mostrar não ter ele co-participação nem ser autor do crime, Lourenço continuava a afirmar com a mais convincente das firmezas que era autor do assassínio; que fora só ele quem matara a alemã; que merecia castigo e ajuntava detalhes elucidativos da sua luta com a alemã que dizia ter morto, nas condições do seu primitivo depoimento.

Vindo a saber-se que os dias que mediaram entre o do crime e o da confissão, não estivera ele em São Paulo, mas, na barra da Guaratiba, em casa de uns antigos serviçais de seu pai, muito chegados à família, sendo ele até padrinho de um dos filhos deles - vindo a saber-se disso, explicava a falsidade, do seu primeiro depoimento nessa parte, como tendo por fito não querer comprometer aqueles pobres pretos aos quais muito estimava e amava.

Toda a sua confissão ia assim se desmoronando com as informações que traziam as pessoas conceituadas no seu meio peculiar, e indicadas tácita ou explicitamente nos depoimentos do acusado, as quais procuradas para elucidar os passos dados por ele naquele sinistro posmerídio de 14 de junho de..., vinham todas elas mostrar a inverossimilhança de suas afirmações, fazendo-o claramente inocente. Não se sabia o que pensar de tão esquisito caso...

O pai, como informante, depôs longamente sobre o caráter e os hábitos do filho. Oseu depoimento foi tocante e longo. Era um velho português forte e firme, com um olhar ladino, mas bondoso, inspirando toda a sua pessoa, retidão e franqueza. Contou ele que desde uns cinco ou seis anos para cá o gênio do seu filho se transformara. Até aos vinte anos, era alegre, até folgazão, gostava de regatas, de festas, de vestuário e atavios. Logo, aos dezesseis anos, pedira-lhe que o empregasse, porque não tinha propensão para os estudos. Ele, pois, se entristecera, porquanto o julgava, como todos os seus mestres,

inteligente e aplicado. Fazendo-lhe a vontade, apesar de isso desgostá-lo e também à mulher, empregara-o em uma casa comercial, por atacado, onde fez carreira, sendo de ano para ano aumentado de vencimentos. Deu em morar fora da casa paterna, sob o pretexto de ficar mais perto do clube de regatas de que era sócio, e não precisar acordar-se tão cedo para comparecer aos "ensaios". Não se opôs, já por julgá-lo ajuizado, já por apreciar o seu desenvolvimento físico e o ar de saúde que ia ganhando.

Aos dezenove anos para os vinte, sem explicação alguma (aí a sua voz tremeu), soube que o seu filho tinha abandonado o emprego e fugira não sabia para onde. Fora ao patrão, pagou-lhe uns pequenos adiantamentos que fizera a casa ao rapaz e, quase dois anos depois, veio a saber que o filho estava na maior miséria em São Paulo, exercendo os duros e humildes ofícios de varredor e carregador de uma venda de arrabalde. A instâncias de sua mulher, partiu para aquela capital, trouxe-o e, um ano inteiro, Lourenço lhe ficou em casa, trocando raras palavras com ele e os irmãos, só se expandindo mais longamente com a mãe. Não atinava com a mágoa do filho e temia que se matasse. Vivia a ler livros de religião e espiritas, cujos títulos ele, o pai, não sabia repetir. Não queria ver jornais, nem revistas. Seus cuidados com a integridade mental do filho eram grandes, tanto mais que, várias vezes, lhe dissera a mulher que, quase sempre, quando ia ao quarto, o encontrava a chorar ou com a fisionomia de quem tinha acabado de fazer isso. Por intermédio dela, sempre lhe fornecia dinheiro, para as suas pequenas necessidades; e, longe de empregá-lo consigo, seu filho dava a maior parte aos criados da casa, às crianças da vizinha, só reservando uma pequena e diminuta quantia para a compra de cigarros ordinaríssimos e fósforos. Quisera-o mandar para a Europa, e ele não aceitara, dizendo à mãe que tinha medo do oceano. Preferia que lhe arranjassem um pequeno empregopúblico modesto; com as suas relações, conseguira ele, o pai, obter; e, desde que o exercia, como que tinha melhorado de estado de espírito. Quanto ao crime, não sabia nada; mas não julgava seu filho capaz de tanta maldade, antes o supunha louco, com a mania do martírio e, em tempo, havia requerido o competente exame de sanidade mental.


A parte do depoimento do pai que aludia à fuga do filho para São Paulo impressionou o repórter d'O Arauto, que, daqui e dali, veio a saber e publicou o motivo dela. Ele abalara para lá, devido a ter dado um desfalque na casa em que era empregado, no valor de dois ou três contos, que foram pagos pelo pai.

A policia que já estava disposta a não acreditar na sua confis são, à vista de tal precedente, voltou à carga, encerrou o inquérito e remeteu-o ao juiz competente. As contradições e incongruências entre a confissão do réu e os depoimentos de testemunhas e informantes continuaram a encher de mistério o caso.

O juiz sumariante ficou completamente atrapalhado, doido até, com tal crime e tal criminoso. Não havia uma hipótese a fazer, quase todos os depoimentos levavam à convicção de que a confissão de Lourenço era falsa; ele, porém, confessava com tal firmeza! Que havia de pensar?

Quemsabe se ele não queria despistar a policia, mas com que interesse? Os seus amigos do peito eram poucos e todos eles podiam dar numerosas testemunhas como tinham passado todo o dia 14, quase todo, nas suas repartições. Por dinheiro? Era absurdo.

O advogado, chamado pelo pai, disse-lhe logo:

- Aceito, mas o meu maior adversário é seu filho... Não cessa de confessar que foi ele e justificar mais ou menos bem os desmentidos às suas afirmações. Olhe como se saiu daquela "potoca" de São Paulo. Perfeitamente aceitável... É o diabo! Mas... aceito!

O advogado, em desespero de causa, pediu exame de sanidade mental para o seu cliente. O juiz com muito contentamento deferiu o pedido. Lourenço foi para o hospício, onde esteve internado dois meses. Da comissão, fazia parte o doutor Juliano Moreira, que empregou todo o seu saber e toda a sua quente simpatia para decifrar aquele angustioso enigma psicológico.

Observado cuidadosamente, virado o seu espírito pelo avesso, interrogado dessa e daquela forma, escrevendo e falando não revelou qualquer perturbação nas suas faculdades mentais. Era o homem comum, o médio, sem nenhuma degenerescência ou psicose, inferior ou superior, acentuada.


Foi pronunciado; mas, antes que entrasse em júri, uma pequena revista lembrouum caso muito semelhante acontecido na Alemanha, em Essen, e contando em um livro do senhor Hugo Fridlaender e resumido, no Le Temps, por Th. de Wyzewa. Tratava-se de um tal Alfred Land que, tendo praticado uma pequena falcatrua, um furto doméstico, se sentiu tão angustiado, tão cheio de mágoa, de ralação íntima a lhe pedir expiação da falta, que não trepidou em acusar-se como autor de um assassínio misterioso, o qual ele estava materialmente impossibilitado de executar.

Citando Wyzewa, o autor do artigodizia que, em Lourenço, a consciência de ter desonrado o seu nome, de ter cometido um crime vil e covarde, de ter injuriado, maculado a honra dos pais e da família, era o que o roía interiormente, o desassossegava, o ralava dia e noite, silenciosamente, sem que ele avaliasse bem a tensão desse estado d'alma, até o dia em que a notícia do assassínio da pequena alemã, num recanto afastado do Jardim Botânico, sugeriu-lhe a idéia de resgatar o seu erro de rapazola com uma condenação por assassínio.

Levava-o a júri uma espécie de necessidade de resgatar a sua falta de um modo "heróico, romanesco e místico" da honestidade; uma premente determinação de expiação do seu crime de furto, determinação que invadira aos poucos, insidiosamente, a sua vontade, no silêncio de suas meditações e nas horas angustiosas do remorso e do arrependimento.

Ninguém aqui, como aquele juiz de instrução do Crime e castigo se abalança a ler as pequenas revistas de rapazes, para estar a par da psicologia mórbida dos criminosos cerebrais e inexplicáveis; e, por isso, muito naturalmente, não houve quem interpretasse de modo plausível a atitude daquele rapaz que parecia desejar com volúpia uma condenação por crime hediondo e execrando.

Foi a júri e não foi difícil absolvê-lo. Ninguém acreditava na sua criminalidade, nem o promotor, nem jurados, nem juiz, ninguém! Quando, porém, o juiz, à vista das respostas do júri, mandou-o pôr em liberdade, se por "al" não estivesse preso, conforme a linguagem forense, Lourenço se levantou, pediu vêniaao juiz, e, perante este e os jurados, protestou contra a sua absolvição, nos seguintes termos:



- Senhor juiz e senhores jurados, eu protesto contra a minha absolvição que é iníqua e injusta, em face da minha consciência. Sou um criminoso, ninguém melhordo que eu pode afirmá-lo; quero sofrer, para resgatar-me e poder, então, viver outra vez com alegria e satisfação, no convívio dos meus semelhantes. Nenhuma justiça, nenhum homem tem o direito de se opor a esse meu sincero desejo... Protesto, portanto!

Sentou-se; mas, o promotor não apelou.